A Revolução dos Cravos trouxe alterações incontáveis. Celebrar, nos dias de hoje, o Dia do Trabalhador pouco tem a ver com a coragem que muitos dizem que era necessária antes do 25 de Abril de 1974. Para os que achavam que a celebração merecia todos os esforços, a originalidade trazia sempre forma de não deixar o dia passar em branco.
Já reformado, um ex-operário recorda ainda hoje a coragem de quem, na serra da Estrela, não deixava o dia por assinalar. A história acabou por passar de geração em geração, de boca em boca. Quem a conta empresta-lhe um tom de orgulho. “A zona da Covilhã era muito industrializada, havia até um batalhão da GNR naquela zona. Para conseguirem assinalar o dia, juntavam foguetes ao longo do ano para atirarem às 7h00 do dia 1 de maio. Quando chegava a GNR, já todos estavam com as suas marmitas a caminho das fábricas. Não tinha sido ninguém.”
Até porque a vida dos lanifícios, que passou a ser foco de desemprego, foi em tempos um dos motores da economia em Portugal. Antes da Revolução dos Cravos, a indústria de lanifícios na Covilhã empregava milhares de operários. Não era raro encontrar famílias completas a trabalhar na mesma empresa. O caminho para a fábrica era partilhado por pais e filhos.
As crianças entravam facilmente no mundo do trabalho e a maioria começava a trabalhar imediatamente após a instrução primária. Nas grandes fábricas da Covilhã entravam todos os dias cerca de dez novos aprendizes. Todos tinham como objetivo comum conseguir ganhar mais e, para isso, era necessário chegar a tecelão. Quem se lembra bem desta altura garante que era vulgar ganhar noutros ramos cerca de 20 escudos por mês. Nos lanifícios era possível entrar e ganhar 66 escudos por semana.
Mas muitos recordam também as regras apertadas. Os trabalhadores tinham dez minutos de manhã e outros dez à tarde para ir à casa de banho. E o que não faltava era quem tivesse esta regra. Em balanço do Grémio dos Industriais de Lanifícios da Covilhã, em dezembro de 1972 havia 99 empresas de lanifícios só nesta cidade. Ou seja, uma só cidade contava com 6760 trabalhadores. Os dados da época apontam para 2720 sócios na Federação Nacional dos Sindicatos do Pessoal da Indústria dos Lanifícios a poucos dias da revolução. Mais de 330 eram menores de idade.
A liberdade chegou com o 25 de Abril de 1974. No entanto, seguiu-se o encerramento de muitas unidades fabris e o desemprego. A revolução veio iniciar um novo período, em especial para a indústria. Nesta altura, muitas fábricas ficavam sem os principais mercados de exportação: as colónias. Entre 1974 e 1984 começou um verdadeiro ciclo negativo para a produção industrial, que perdeu peso na economia. Aumentava então o setor terciário.
Indústria perde peso De acordo com um boletim de informação do Serviço Nacional de Emprego (SNE), no verão de 1974 aumentava o desemprego como consequência do encerramento de várias empresas. Os números relativos à indústria dos lanifícios tinham grande peso. “Após o 25 de Abril, o mercado tem sido afetado por um conjunto de fatores, alguns dos quais já se faziam sentir antes. Expetativa das atividades económicas, estabelecimento do salário mínimo nacional, problemas de crédito, contração do mercado interno, nalguns casos externo, falta de matéria-prima e surto de cólera têm sido apontados como causas de despedimento e não criação de postos de trabalho”, explicava o documento.
No final de junho de 1974, o SNE tinha um grande número de pedidos de emprego. A procura começou então a crescer muito em distritos como Santarém, Aveiro e Castelo Branco, e era reflexo sobretudo da dinâmica de trabalhadores indiferenciados. Mas nesse mês havia também em Castelo Branco, por exemplo, menos trabalho na construção civil, têxtil, vestuário e calçado. E o documento não previa melhores dias: “Prevê-se a concretização a curto prazo de maior volume de despedimentos.”
Só no caso dos lanifícios, entre 1974 e 1979, a recessão que se fez sentir em todo o país neste setor fez com que desaparecessem 13% das empresas.
Só a Ernesto Cruz empregava cerca de 600 operários. Em determinada altura, alegando dificuldades financeiras, não pagou os salários. “Foi a primeira na Covilhã”, recorda quem esteve ligado a esta indústria.
Mas as alterações foram sentidas em vários setores de atividade e em várias cidades. Tempos houve em que, em Portugal, o ensino industrial era considerado essencial para a formação de profissionais qualificados e necessários ao de-senvolvimento industrial do país.
Agricultura perde expressão De acordo com uma análise social do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, “a população ativa agrícola atingiu, em 1950, mais de 1,5 milhões de pessoas, o que correspondia a um acréscimo de 300 mil nos últimos 20 anos e de cerca de 100 mil na década de 40. O declínio foi mais rápido: em 1970, a quebra era já de um terço em relação ao número de 1950 e, 11 anos depois, de mais de metade”.
A verdade é que o quadro económico e social apontava para um grande êxodo agrícola que fez com que também a área cultivada se retraísse. “Assim, no Continente, em 1970-1974, a área semeada anualmente já caíra 23% em relação a 1960-1964.” Entre 1974 e 1976 chegou mesmo a ser aprovado um leque de medidas que tinham como objetivo apoiar os agricultores.
Uma Lisboa industrial De acordo com a última estatística divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a população desempregada recuou para as 381,2 mil pessoas em março, segundo a estimativa provisória do INE. Em 1975 rondava os 250 mil. Entre os desempregados estavam muitos dos trabalhadores da Applied Magnetics, uma multinacional norte-americana que estava em Sacavém. Muitas das fábricas que se espalhavam um pouco por toda a Lisboa e arredores foram, aliás, desaparecendo.
Em 1960, as chaminés marcavam a paisagem para quem percorria as ruas do motor industrial da cidade, Marvila. Era este o centro da produção de sabão, tabaco, vinho, fósforos ou armamento militar. Marvila servia, aliás, como entreposto de peso na receção das populações que vinham do campo. A porta de entrada para a nova realidade era a Estação de Braço de Prata. O destino era, em grande parte, a indústria. Só a Companhia Portuguesa de Fósforos, em funcionamento durante 90 anos, chegou a empregar 1000 operários. Em 1978 tinha apenas 79. E há quem se lembre bem dos tempos áureos em que esta zona contava com mais de 140 mil trabalhadores. Começou a definhar depois de 1980.
O comércio também mudou. Tempos houve em que as mercearias, por exemplo, tinham tudo e todos lá iam parar. Mas longe vão os dias de uma clientela que fazia fila. Agora há lugar para grandes superfícies e o fiado foi substituído pelas promoções e cartões. Mas não há só queixas desta evolução. Há quem garanta que os supermercados “habituaram os clientes a levar em mais quantidade”.
As profissões que ficam para trás Em 1970, os correios passaram a empresa pública, CTT – Correios e Telecomunicações de Portugal, que nesta época englobavam, além do serviço postal, a atividade telefónica. Nessa época, esta era a terceira maior empresa do país em volume de vendas e a maior empregadora nacional, com mais de 45 mil colaboradores, entre eles telefonistas.
Para ligar de Lisboa para uma qualquer aldeia que tivesse telefone houve uma altura em que era preciso fazer a chamada para uma determinada zona e só depois era feita a ligação para o número em questão. Era frequente ouvir do outro lado uma voz que não podia ser mais familiar: “Sim, menino, como está? Vou tentar passar a chamada, mas penso que os seus pais a esta hora não devem estar em casa.” Afinal, era por elas, telefonistas, que todas as chamadas passavam e, por isso, conheciam as rotinas, as vozes e as pessoas.
Há pouco mais de 30 anos era assim que se vivia em Portugal. Nem todas as casas tinham telefone e nas aldeias faziam–se festas quando aparecia um. As conversas eram pagas ao impulso e havia subornos e cunhas para encurtar a lista de espera para ter um número atribuído. Tudo passava pelas telefonistas. Esta foi, aliás, uma das profissões que permitiu a emancipação da mulher em Portugal. Cecília Rodrigues, hoje com 70 anos, relembra os tempos em que foi telefonista, profissão de que fala com orgulho e da qual sente saudades, mas não esconde: “Tinha regras exageradas.”
Para ir à casa de banho era preciso pedir autorização e, mesmo quando as regras já não eram tão severas como outrora, não era permitido namorarem perto da central onde trabalhavam.
Tinham de “ser solteiras, ter 1,5 metros de altura, entre 16 e 20 anos, com instrução primária, dotadas de bom ouvido, boa voz e boa pronúncia”. No geral “havia um horário rígido que, no início, era das 8h00 às 21h00, com uma hora de almoço e outra de jantar. Eram 11 horas e a jornada era contínua. Havia apenas pausas para ir à casa de banho e eram tempos controlados pela supervisora. E quando uma ia não podia ir outra”, explica Américo Mascarenhas, guia no Museu das Comunicações.
Uma outra profissão que foi perdendo espaço ao longo dos anos foi a de leiteiro. O leite era entregue em garrafas de vidro ou recipientes de alumínio nas casas dos clientes. O leite era bem medido e as famílias aguardavam o leiteiro à hora prevista. Havia quem pagasse à semana. Apesar de ter deixado de existir gradualmente, em 2012 ainda existiam zonas de Portugal com este serviço. Nos Açores, por exemplo, o leite continuava a ser entregue três vezes por semana.
Mas existem mais profissões que têm vindo a desaparecer ou a perder influência. Atualmente existem alfaiates e modistas a trabalhar de forma autónoma e a fazer peças por encomenda. Muitos têm os seus próprios espaços. Mas, durante muitos anos, esta profissão era de grande importância nalgumas freguesias que viam neste negócio o fulcro da economia local.
Outro exemplo é a altura em que havia um engraxador em cada canto do centro da capital portuguesa. A verdade é que existiam clientes em número suficiente para todas as caixinhas e banquinhos espalhados pela cidade. Eram tantos que alguns se davam ao luxo de só confiar num. Tinham o seu engraxador. Mas os tempos mudaram. Um sapato impecavelmente engraxado perdeu importância e já não há tempo para ficar sentado à conversa.
Existem outros exemplos, uns com mais expressão do que outros. Tempos houve em que as pessoas que vendiam jornais tinham nome: ardinas. Eram presença habitual nas ruas de Lisboa e de todo o país, mas o progresso encarregou–se de os fazer desaparecer. Muitas vezes, ainda a madrugada ia nas primeiras horas e já esperavam pelos jornais que levariam para distribuir por várias casas. Faziam rua a rua, dividiam as zonas e conheciam as preferências dos clientes.
Também ter porteiro no prédio passou a ser um luxo.
A evolução De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, nos anos 70, a taxa de desemprego para as mulheres cresceu de forma muito acentuada, “tendo conhecido uma forte queda na década seguinte e uma queda, ainda que mais moderada, nos anos 90”. Analisando o que aconteceu ao longo das últimas décadas em matéria de emprego e salários, pode dizer-se que “a taxa de atividade das mulheres, que registou 19% em 1970, aumentou progressivamente até 43,9% em 2011. Ao contrário, a taxa de atividade dos homens, que em 1970 atingia os 62,1%, tem vindo a decrescer, exceto durante os anos 90”. Houve ainda um forte crescimento da população empregada no setor terciário em detrimento do primário. O setor primário caiu drasticamente de 30,3%, em 1970 para 3,1% em 2011. Já o secundário, que aumentou nos anos 70, também acabou por perder algum peso. Ainda assim, de acordo com o INE, o setor que mais emprega em Portugal é o das indústrias transformadoras.
Entre os setores que mais empregam nos dias de hoje destacam-se ainda o comércio grossista, retalhista e de reparação de veículos, o setor das atividades de saúde humana e apoio social, o da educação e a área do alojamento e restauração. No total, estes setores representam quase metade da população empregada.