Entre Nós, um texto inédito de Álvaro Domingues, autor de “Volta a Portugal”

O geógrafo e arquitecto tem andado por aí, do norte ao sul e ilhas, sem palas nos olhos. Tendo chutado as habituais muletas teóricas, olha à sua volta como um ET, como se a verdadeira vida das coisas pudesse dar-lhe outra explicação. E prefere “violentar o indígena” do que deixar-se ir nesse desespero da treta…

Na longa história dos humanos, são incontáveis os esforços para ultrapassar as limitações de andar a pé, vencer distâncias, carregar coisas às costas. Sapatos, rodas, cavalos, carros, pombos-correio, sinos, telefones, pilhas, correio electrónico ou sinais de fumo, tudo foi servindo para mover pessoas, informação, mercadorias, energia, capital, animais e o mais que fosse preciso. Sem próteses a maior parte dos primatas fica preso aos lugares onde nasceu e muitos há que nem às árvores sobem.

Dos muitos artefactos que se foram acumulando, as cidades pertencem à família dos mais complicados, emaranhados, politica e funcionalmente diversos e mobilizadores de multidões. Quando as próteses eram poucas e rudimentares – ruas calcetadas, fontes, muralhas, aquedutos, carros, mulas e cavalos – e estavam muito mal distribuídas, vivia-se apinhado, próximo, aglomerado. Mudar o que fosse necessário envolvia custos de transacção vedados à maioria. Toda a urbanização era cidade, gigantesco sistema de próteses proporcional ao funcionamento de tão complexa vida social. Chamaram-lhe civilização. As cidades tinham nome, centro, forma, limites, história, identidade, tudo; confundia-se o artefacto construído com os que lá viviam, o seu sistema de governo, a sua cultura ou economia. A cidade era um todo, um sistema definido.

Diz-se agora em grandes cartazes vermelhos que vem aí o WI-FI com asas. Não é para falar da última geração de híbridos bio-electrónicos de pombo-correio. É simplesmente para dizer que à velocidade a que se inventam e proliferam novas e gigantescas próteses e sistemas sócio-técnicos, se vai mudando o modo de funcionamento da sociedade e, por isso, do seu território.

Por isso as cidades acabaram. Perderam limites, formas, definições; ficaram os nomes. A clareza dos lugares onde se confinavam ou a nitidez da organização dos que diziam ser seus habitantes, explodiu por geografias imensas, esfumou-se por movimentos de gente que ora se cruza por distâncias desmedidas, ora vive dias e dias sem sair das mesmas rotinas e trajectos curtos.

A metamorfose da urbanização absorveu a cidade num processo sem fim: toma forma e lugar nos mais diversos contextos, geometrias, funções, aglomerando ou dispersando actividades, gente, ricos e pobres (muitos), como sempre. Onde houver rede eléctrica, telecomunicações, água, saneamento, asfalto ou qualquer outro dispositivo tecnológico que pertença ao conjunto do que é fundamental para qualquer coisa funcionar dentro de casas, fábricas, hospitais, escritórios…, aí emerge a urbanização.

Quando o calibre e performance dos sistemas sócio-técnicos são da família das auto-estradas ou das redes de telecomunicações de alto débito, o espaço e o tempo sofrem distorções  nunca vistas; o espaço comprime-se e o tempo acelera por artes de velocidade. Por isso os nós são especiais. Pelos nós se entra nestes túneis do espaço-tempo por onde rolam pessoas e contentores tecendo conexões da mais variada intensidade e alcance geográfico. Por isso se atropelam os nomes, os escritos, os edifícios, a constante agitação das coisas que mudam, que se dispõem umas ao lado de outras com a única finalidade de partilharem estas portas de acesso ao hiper-espaço, o espaço de múltiplas dimensões, liso, estriado, dobrado. Há tais mudanças que acontece perguntarmos onde é que se localiza qualquer coisa e nos respondem que é a cinco minutos do nó da auto-estrada. E nós sorrimos como se nos tivessem perguntado quanto é que faltava para as três da tarde e nós respondêssemos que era logo ali a trezentos metros.