Na Madragoa, o protesto faz-se com tinta vermelha: “Não vou para a rua”, “Não saio daqui”, lê-se em dois panos brancos pendurados na casa de Vanda Bettencourt, de 40 anos. “Acho que isto já está a ser desumano”, comenta a moradora, que recebeu a ordem de despejo por ter acabado o contrato de arrendamento. Está há sete anos naquela casa, onde vive com o marido e três filhos menores, dois gémeos com nove e um mais novo, com sete.
Numa situação parecida estão mais três famílias, mesmo do outro lado da rua. Vivem num prédio antigo há uma vida e recusam-se a sair. “Tirar a minha mãe daqui é matá-la”, afirma Carla Guedes, de 48 anos. A mãe de Carla e a sua vizinha Zulmira Estrela, de 73 anos, são duas das três resistentes que se recusaram a aceitar a indemnização do senhorio para abandonarem o imóvel. A Zulmira, o valor oferecido foi de 45 mil euros.
“Se arranjássemos agora aqui uma casa era por cinco anos, depois ia para debaixo da ponte”, diz, já com as lágrimas a aparecerem, enquanto Carla dá como o exemplo o caso da tia, apontando para uma casa na mesma rua: “Aumentaram–lhe a renda de forma exorbitante, ela assinou um contrato de cinco anos e agora vai ter de sair.” Mais do que abandonar o bairro, a questão destas moradoras é para onde ir. “Eu não consigo arranjar uma casa em Lisboa por menos de mil euros”, desabafa Vanda.
Apesar de já ter a recebido a carta de despejo, Vanda não baixou os braços e decidiu avançar com uma petição para entregar na Junta de Freguesia da Estrela a solicitar que esta tome uma posição na Câmara de Lisboa. “Cabe à junta de freguesia defender os seus habitantes e pedir à Câmara Municipal de Lisboa que reabilite as suas propriedades e integre os residentes nesses mesmos prédios”, pode ler-se no documento que Vanda traz consigo e que já junta quase 300 assinaturas, entre presenciais e online.
Para as moradoras, não é preciso ir muito longe para encontrar a solução. Mesmo ao fundo da rua está um prédio devoluto com uma placa onde se lê “Património Municipal”. Contactada pelo i, a Câmara de Lisboa reconhece a existência do património, mas afirma que tem “tamanho e características que, neste momento, não permitem as condições de habitabilidade desejadas” e, por isso, está a ser estudada uma proposta “para fazer uma reabilitação mais profunda, necessária para poder pôr estas casas outra vez em habitação”. Há também “património municipal à volta daquela zona que está ocupado nos diversos programas que a câmara tem neste momento em funcionamento”, garante.
No que toca aos concursos, o programa “Habitar o Centro Histórico”, que recebeu um total de 110 candidaturas válidas, destinou-se apenas aos moradores das freguesias de Santa Maria Maior (que teve 46 candidaturas), Santo António, São Vicente e Misericórdia. A freguesia da Estrela, a que pertence o bairro da Madragoa, não foi incluída.
A Câmara de Lisboa explicou ao i que o concurso pretendia responder às freguesias com mais necessidades de habitação. No entanto, afirma que “há possibilidades de alargar o concurso, nomeadamente a Arroios e às zonas mais próximas do centro histórico”.
Entre os inquilinos que receberam ordem de despejo está também a pastelaria O Lugar, mais conhecido como o café do senhor Manuel. Há 30 anos, Manuel Bastos, atualmente com 57 anos, pegou no espaço de uma carvoaria e transformou-o numa mercearia que agora é pastelaria com serviço de refeições rápidas. “[O senhorio] mandou-me, simplesmente, uma carta, como se isto fosse um brinquedo. Tenho dois meses para largar a casa”, conta, mostrando a carta enviada pelo filho da senhoria, que entretanto ficou responsável pelo imóvel. “Nem alega que querem fazer obras, querem simplesmente o prédio vazio”, acrescenta, reforçando que também não aceitaram a proposta de subir o valor da renda.
O senhor Manuel recorda o tempo em que havia dez lojas no bairro da Madragoa, um centro de saúde, uma farmácia, duas tabernas, um oculista e uma escola primária. “Agora só tem esta e um café ali”, afirma com mágoa, enquanto defende que os moradores deviam fazer um “protesto grande quando fôssemos nas marchas [de Santo António]”.
Para além dos cinco trabalhadores que tem na pastelaria, os contratos com as marcas ou a fidelização nas telecomunicações, o principal receio de Manuel é que o encerramento do café possa deixar os moradores mais idosos vulneráveis. “Quando alguém não aparece aqui, eu vou lá [a casa] ou telefono”, e lembra um caso concreto em que uma cliente habitual não apareceu e, ao ir procurá–la, encontrou-a em casa, caída no chão.
Também o Esperança Atlético Clube, o grupo recreativo do bairro, tem apoiado os moradores em casos semelhantes. Rui Ferreira, de 45 anos, presidente do Esperança, explica que “há muitos moradores a dirigirem-se ao clube para saber como chegar ao poder local”. “É muito difícil não poder ajudar os idosos, às vezes sentimo-nos pequeninos”, desabafa. “Este bairro ficou parado no tempo”, critica ainda Ferreira.
Bloco anuncia linha SOS despejo Os moradores esperavam que fosse Catarina Martins a ir à Madragoa conhecer os seus problemas; no entanto, o Bloco de Esquerda nunca referiu a presença da coordenadora. Foi Beatriz Dias, deputada na Assembleia Municipal de Lisboa, quem representou o partido e ouviu os moradores. “O Bloco de Esquerda vai apresentar [uma proposta] – já tínhamos apresentado uma recomendação – para a criação do SOS Despejo, que é uma linha telefónica para poder apoiar os moradores e todas as pessoas que estão nesta situação para poderem saber quais são os seus direitos, dar proteção legal e também ajudar a resolver algumas das situações”, explicou a deputada ao i. A proposta será apresentada hoje na reunião da assembleia municipal.