Gosto de ler paredes. Isto é: no tempo em que as paredes falavam, agora limitam-se a grafittis baratos e sem sentido que nada revelam que valhe verdadeiramente a pena. Por exemplo, certa vez em San Salvador, dei com letras negras num muro impecavelmente branco: «Salvadoreños, tanta tranquilidad me da miedo». Como se a violência fosse uma espécie de droga e obrigasse a uma dose habitual.
As paredes, às vezes, eram as cicatrizes do Erasmo Carlos: «Eu sei que as cicatrizes falam/Mas as palavras calam/O que eu não me esqueci». Em Belfast, havia uma que gritava uma pergunta: «Is there death after life?». Um recado que vinha da morte? Ainda uma esperança de sossego? Na Avenida de Berna, alguém escreveu uma sentença irreversível: «De Auschwitz a Beirute só a memória é curta». Em Londres, no Soho, citaram Sugar Ray Robinson: «Every move you make starts with your heart».
Na verdade, a frase completa de Sugar foi: «Rhythm is everything in boxing. Every move you make starts with your heart, and that’s in rhythm or you’re in trouble». Um ensinamento sábio que nada lhe valeu no momento em que resolveu apresentar-se ao público parisiense como bailarino. Um desastre. O ritmo só lhe entrava no coração se estivesse no ringue. Há quem diga que foi ele que elevou o boxe a uma forma de arte. Há quem diga que foi o maior pugilista de todos os tempos. Até Mohammad Ali conseguiu dirigir-lhe elogios embora os tivesse quase todos guardados exclusivamente para si próprio.
Sugar começou por ser Walker Smith Jr. Mas não havia lugar no boxe para um Walker, muito menos Smith. Ainda por cima Jr. como qualquer candidato a governador do Arkansas. Então entrou o açúcar. Ou seja, Sugar.
Eduardo Ohata publicou no Jornal de São Paulo uma crónica que começava assim: «Hoje em dia é comum esse ou aquele pugilista preceder seu nome com o apelido Sugar. Pode ser por pura vaidade, um truque de marketing de seu empresário ou um apelido dado por membros da imprensa (geralmente precocemente). Há tantos que corre-se o risco de adquirir diabetes: Sugar Shane Mosley, Sugar Ray Leonard, talvez o mais popular, e Sugar Ray Seales estão entre os mais notáveis». Depois, como é óbvio, dedicou-se a falar sobre Sugar Ray Robinson.
Um artigo sobre Sugar Ray saído no The Ring, considerado a ‘Bíblia do Boxe’, dizia que ele só poderia ser melhor se andasse sobre a água. E foi mais ou menos isso que ele pretendeu fazer ao trocar o boxe pela dança em 1952.
Chegou a gravar umas cenas com Gene Kelly, o homem de Serenata à Chuva, e continuou a molhar-se quando fez uma digressão com a Count Basie Orchestra. Em Paris, o público não lhe foi simpático. Com alguma razão. Afinal fazer sapateado e saltar à corda ao mesmo tempo era mais coisa de circo do que de verdadeiro music-hall. É verdade que, durante o Maio de 68, foram as paredes de Paris que nos ensinaram várias lições importantes. Uma delas era «Il est interdit d’interdire», coisa que Sugar Ray levou à letra mais de dez anos antes. Outra, atribuída a MargueriteDuras, que viveu esse mês com uma dedicação infinita, alertava: «Não sabemos para onde vamos, mas isso não é motivo para não irmos».
Não terá sido completamente por acaso que casou com uma bailarina, Edna May Holly, que actuava no Cotton Club e fez uma famosa digressão pela Europa na companhia de Duke Ellington. Quando regressou ao boxe, em 1955, declarou que se encontrava em plena forma. Afinal, durante a sua temporada em França, corria dez quilómetros por dia e passava cinco horas consecutivas a dançar. Nunca fora habituado a perder. Os seus números eram impressionantes no dia da sua retirada, em 11 de novembro de 1965: 173 vitórias, 9 empates e 6 derrotas. Gastou todo o dinheiro que ganhara e, tal como sugeria Eduardo Ohata, adquiriu diabetes. Afinal não se é Sugar por dá cá aquela palha. A insulina passou a fazer parte do seu dia a dia.
Nos Olivais Sul da minha adolescência, ali a caminho do inesquecível Porco Sujo onde passei muitas horas a falar de futebol com o meu amigo Aventino Teixeira, houve quem tivesse o cuidado de avisar nas traseiras de um prédio: «Ò drogado, olha a parede!»
Não faço ideia de quantos terão chocado com ela antes de a lerem. Ou se o berro urbano evitou cabeças rachadas e narizes partidos. Sei que Sugar Ray Robinson se movia ao ritmo do coração nos ringues, mas nos palcos punha-se, por falta de jeito, a jeito da ferocidade da crítica. As paredes falam e as cicatrizes calam. Sugar dançava como uma fera ferida no corpo, na alma e no coração. Erasmo Carlos tinha razão: «Animal arisco/Domesticado esquece o risco».