Jean-Luc Godard tem um estatuto de quase semi-deus e em Cannes tem sido uma personagem omnipresente. Mesmo antes de iniciar o festival e Livre d'Image, o último filme avant garde de Jean-Luc Godard, ser mostrado a primeira vaga de cinéfilos vorazes e em sorver a nova obra de arte do mago do Cinema, já a sua presença era um evento.
Alias, o próprio festival servia-se da imagem de Anna Karina e Jean Paul Belmondo em Pedro, o Louco, um filme que fez em 1965, para se mostrar ao mundo. Tal como o fizera há dois anos atras, com uma fotografia de O Desprezo, de 1963. Mesmo o ano passado, foi evocado através do filme Le Redoutable, de Michel Hazanavicius (que em língua inglesa recebeu o titulo caloroso de Godard Mon Amour), com Louis Garrel a assumir (de forma conseguida, diga-se) a personagem Godard, no período em que vive com Anne Wiazemsky, e ainda no documentário da amiga Agnes Varda, Visages Vilages, se bem que de forma igualmente não corpórea, pois não compareceu a um encontro marcado. Godard, o fantasma, quase sobrenatural.
E se fosse possível fazer-lhe uma pergunta, não ao vivo mas através de um telemóvel, via FaceTime, o que lhe perguntaríamos? Por certo, a variedade e curiosidade seria tremenda. E a solução de uma presença via iPhone soa mesmo a Godard. No nosso caso, foi simples. Se ainda hoje faz sentido de formular a eterna pergunta: “O que e o cinema?” E o que significaria isso. Mesmo sem ser particularmente elaborado, o cineasta de 87 anos naturalizado suíço acabou por sintetizar de forma algo enigmática referindo que ao lado dessa questão central existem outras questões periféricas, embora insuficientes para mostrar tudo aquilo que fazemos, até porque, como o próprio diz, vemos tudo isso no Facebook. Por isso, advoga, que interessa aquilo que não se faz e o que nunca veremos no Facebook.
Ora, Livre d’Image pode ser encarado como um documento artístico que vai muito para além do cinema, e ase aproxima ate mais da pintura. Recordemos por exemplo Adeus a Linguagem ou Filme Socialismo, filmes ensaio anteriores que passaram ambos em Cannes e receberam prémios – e estamos certos que Livre d’Image também poderá ser distinguido – para percebermos como se prolonga esse percurso de questionar a verdade para além das imagens. Um projeto que partiu da colaboração entre o cineasta suíço Fabrice Aragno, o produtor de Godard Jean-Paul Battaggia e a professora de cinema avant-garde Nicole Brenez.
Talvez por isso seja mais útil encarar este livro de imagens como o trabalho exaustivo de um artista e de um filósofo. Por isso mesmo, não questionamos as suas opções narrativas sempre tão fragmentadas pela edição, ou talvez melhor pela colagem, como não questionamos o gesto criativo de um pintor. Godard parte do texto, da imagem, da palavra.
Na verdade, certas imagens dever ser reservadas a pintura, haveria de referir. Prometendo que esse seu filme haveria ser projetado durante os próximos dez anos em pequenas salas para difundir a cultura o teatro ou o circo. Algo que seja verdadeiramente livre, como numa manifestação militante. Voila l’avernir, ou seja, será esse o futuro. E a projeção perfeita futuro, para Godard, será num café e no lugar do ecrã de televisão teremos filmes sem som, pois este vira de um outro suporte.
E o som e as imagens são aqui centrais. Com a sua voz off a pontuar fragmentos de imagens, ou a dar espaço aos silêncios e mesmo ao ecrã vazio, aos erros. E um dos fragmento de filmes, aquele reproduzido com maior cuidado, com todo o esplendor do technicolor, foi o dialogo tenso entre Sterling Hayden e Joan Crawford, no muito amado Johnny Guitar, o clássico de Nicholas Ray, seguramente um dos momentos ‘mais la de casa’ de João Benard da Costa. Mesmo que Godard diga que não.
Este será tanto um cinema de imagens como também um instrumento político, tal como grande parte do cinema de JLG, atravessado por fragmentos vídeo reportagem com atrocidades e com um dedo apontado ao destino da Palestina. Por isso Godard imagina através das imagens. Hoje em dia as pessoas têm a coragem de viver a sua vida, mas não de a imaginar. Eu tenho essa coragem, o que me permite continuar a apanhar esse comboio da Historia. Mas penso também naqueles que apanham o comboio para ir a um trabalho e que não tem coragem de imaginar, a não ser a criação de start ups.
Goste-se ou não, Livre d’Image e um documento histórico tremendo, vigoroso e fortíssimo, demasiado valioso para ser subestimado. Pode até ser encarado como uma instalação de um museu ou uma pintura multimédia gerada num momento de êxtase criativo. Mesmo que nesse processo se cometam erros voluntários, de som, de imagem, como que a dizer que assim se torna mais terreno, mais humanos e menos semi-Deus.