1982. Ano quente do Mundial de Espanha, do Brasil de Sócrates, Falcão e Zico, do naranjito e do “Verão Azul”, sobre um grupo de amigos em férias no sul da Andaluzia. O tom leve e amistoso não impedia a série de introduzir temas sérios como sexualidade, o divórcio, as drogas e a ecologia, num país que vivia uma mudança de comportamentos e mentalidades após o período franquista.
Antonio Mercero, o mentor do grupo formado por cinco rapazes (Pancho, Javi, Quique, Tito e Piraña) e duas raparigas (Beatriz e Desi, irmãs na vida real), que faz amizade com dois adultos, a pintora Júlia e o marinheiro Chanquete, partiu este sábado aos 82 anos, anunciou a Academia de Cinema espanhola. Sofria de doença de Alzheimer, motivo pelo qual estava afastado da vida público há algum tempo. “O Verão Azul” é a série porque é lembrado mas foi com “A Cabine Telefónica”, de 1972, que se tornou o primeiro e único espanhol a vencer um Emmy. Em 2010, recebeu o Goya de Honra que, por limitações físicas, já só pôde receber de Álex de la Iglesia em casa.
O El Pais recorda a “imensa capacidade” do realizador basco “para se relacionar com um público heterogéneo de qualquer classe social e intelectual, idade ou condição” e chama-lhe “um Hitchcock espanhol à sua maneira”, descrevendo-o também como um “sentimental discreto”. Para trás, fica uma coleção de filmes e séries, definidas pela humanização de personagens, que marcam a vida espanhola dos últimos quarenta anos como “Crónicas de un pueblo” (1971-1973) e “Farmacia de guardia (1991-1995)”.
Mercero nasceu em Lasarte-Oria, no País Basco, em 1936, e foi formado pela Escola Oficial de Cinema em 1962. Após dirigir várias curtas, estreou-se em competição com “Lección de Arte” nesse mesmo ano. Com êxito já que o filme venceu o prémio de Melhor Curta Festival de San Sebastian.
“Se necesita chico”, do ano seguinte, inaugurou a produção de longas-metragens mas foi na televisão que a obra de Antonio Mercero se popularizou. “A Cabine Telefónica”, escrita a quatro mãos com José Luis Garci, e protagonizada por José Luis López Vázquez, foi emitido pela TVE a 13 de dezembro de 1972 e fez história a partir desse dia. Conquistou o Emmy de Melhor Telefilme e audiências estrondosas na televisão pública espanhola.
Narrativa kafkiana construída sobre diferentes ângulos sociais e políticas, foi definida pelo realizador como “uma parábola aberta a todo o tipo de interpretações que, de acordo com a sensibilidade, cultura e formação de cada um, é recebida de forma distinta”.
De saída da década de 70. olhou para dentro de casa em “La noche del licenciado”, a história de um herdeiro da alta burguesia que escolhe o improvável caminho de ser palhaço, ou a alegoria da decisão de querer ser realizador de cinema contra a oposição familiar.
E chega o “Verão Azul”, em 1980, ano da produção da série que acabará por estrear a 11 de outubro de 1981. Espanha cola-se ao ecrã da caixa colorida e, um ano depois, o contágio chega a Portugal com resquícios até hoje – o elenco voltou a juntar-se em 2011, para assinalar os 30 anos sobre estreia, mas já sem a presença de Antonio Ferrandis (Chanquete), falecido em 2000, aos 79 anos.
Os anos 80 de Mercero não se esgotaram no clássico dos clássicos. No biénio 86/87, “Turno de Oficio” há-de pôr o grande público a observar os complicados caminhos da justiça com drama e alguma comédia. A série há-de o deixar esgotado e a questionar prioridades na vida. “Quando acabei de escrever, pensei em deixar de fazer séries. Sempre disse que a fazer séries se nota o envelhecimento, enquanto a fazer filmes se nota o viver”.
O plano fraqueja e a ficção televisiva continua a dominar-lhe a agenda. “Farmacia de guardia” transmite sinais de renovação e adaptação, agora ao serviço de um privado: a Antena 3.
No cinema, primou pelo ecletismo nos 14 filmes assinados. Em “Espérame en el cielo” (1988), observou a figura de Franco não apenas sob um ângulo politizado mas também satírico. Dez anos depois, guardou um final emocionante para “La hora de los valientes”, quando a personagem de Gabino Diego é fuzilada por defender um auto-retrato de Goya. “Planta 4ª” retomou a senda dos êxitos de bilheteira ao contar a 1,2 milhões de espectadores uma história sobre cancro infantil em que pranto e gargalhada andam par a par.
“Y tú quién eres?”o epitáfio de 2007, é um relato sobre o Alzheimer rodeado de suprema ironia autobiográfica. Quando iniciou a rodagem, apenas as personagens eram portadoras da doença degenerativa. Mercero acabou por personificar a história ao acumular sintomas semelhantes àqueles que observava atrás da câmara, como a perda progressiva de memória.
A vida a imitar o cinema? Por vezes, a ficção adivinha o real.