As paredes da casa guardam as memórias de várias gerações de estudantes que por ali passaram. De um lado, frases soltas de momentos ali vividos; do outro, pinturas políticas. Ao fundo veem-se as datas dos vários centenários – os aniversários anuais da república, assim chamados por um ano na casa mais parecer cem, dizem os anfitriões. Por fim, o hino desde a fundação, que não podia faltar.
Estamos na sala de estar da Rosa Luxemburgo, uma casa “transfeminista e autonomista” fundada ainda nos tempos da ditadura. É uma das repúblicas de Coimbra. A história destas residências de estudantes caminhou, ao longo de séculos, a par e passo com a da própria Universidade de Coimbra, fundada em 1308 por D. Dinis e desde 2013 Património Mundial da Humanidade. Em 1309, D. Dinis assinou um diploma régio para se construírem casas para servirem de habitação a estudantes. Desde então, os tempos mudaram e trouxeram novas vontades. Viram terminar a monarquia e nascer a República, e passaram pela ditadura até chegar a democracia.
Hoje, as repúblicas representam pequenos focos de resistência de uma contracultura da vida estudantil coimbrense e, alertam os estudantes que nelas vivem, esse património cultural e social sofre novas ameaças: a especulação imobiliária e a crescente turistificação da cidade.
“Das 25 repúblicas, 12 estão no mapa turístico da cidade e não lhes foi pedida autorização”, diz Ana Rui Fonseca, de 23 anos e mestranda em Psiquiatria Cultural e Social. Vive na república Rosa Luxemburgo e conta que nos últimos tempos se tornou comum terem “guias turísticos e turistas a baterem-lhes à porta para conhecer a casa”. A curiosidade já tem gerado situações algo insólitas, relata. Um dia, quando foi descansada “à janela regar as plantinhas”, deparou-se “com uma horda de turistas” a tirarem-lhe fotos, conta entre risos. “Somos casas de portas abertas, mas a malta também tem vida.”
Foi para se protegerem desta nova realidade na cidade que 24 repúblicas, num universo de 25, submeteram candidaturas à Câmara Municipal de Coimbra para serem reconhecidas como entidades de interesse histórico, cultural e social. Este estatuto, ao abrigo da lei 24/2007, protege, durante cinco anos, as repúblicas de eventuais despejos e da atualização das rendas pelos senhorios. “Existem imensos benefícios, entre os quais qualquer ação de despejo ficar automaticamente anulada nos próximos cinco anos, além de não poder haver atualização de rendas”, explica Ana – uma ação que, como anunciaram em comunicado, “foi um processo de unidade das repúblicas no seu todo, que construíram as propostas em conjunto para continuarem a existir como casas de estudantes comunitárias”. Um processo longo. “Foram horas de assembleia-geral [conselho das repúblicas], mais de nove, e de comissões”, diz Ana.
Entretanto, a Câmara de Coimbra já decidiu conceder este estatuto a duas repúblicas, à dos Fantasmas e à Rápo-Táxo, e as restantes aguardam com expetativa desfechos semelhantes para as suas casas. Apesar de o conselho das repúblicas se ter congratulado com a decisão municipal, não sentem que o perigo já tenha passado por completo e já pediram soluções definitivas, e não provisórias por cinco anos, afirmando que “a solução definitiva passa pela reformulação do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU)”. Com o atual quadro legal, o conselho fala de uma “falsa sensação de estabilidade”.
Inês Capelo concorda. Tem 23 anos, está a tirar o mestrado em Curadoria e vive na república dos Corsários das Ilhas. Diz que os estatutos já reconhecidos são um bom resultado, mas a “luta não é individual”. Quer ver todas as repúblicas a beneficiarem desta proteção, até porque a história de cada casa contribui para um legado único que se confunde com os capítulos da vida académica da cidade e do país. O início das duas repúblicas que o i visitou atestam isso mesmo.
Pequenos focos de resistência
Poucos anos tinham passado desde a revolta estudantil de 1969 quando Fernanda Mateus, militante comunista e feminista, fundou a república Rosa Luxemburgo.
A “bombista”, como então lhe chamavam – mas que não punha bombas -, tinha sido presa e torturada pela PIDE em Caxias. Ao sair da prisão decidiu criar uma república estudantil feminista num universo declaradamente machista, forjando a assinatura do pai para poder arrendar a casa. “Fomos a primeira república que oficialmente teve mulheres”, diz Ana, com orgulho. “Quando foram criadas, as repúblicas eram só para homens; agora são todas mistas menos uma.”
Desde esse momento que a história da fundadora é passada de geração em geração, com mais ou menos pormenores. Uma história ainda hoje visível nas paredes da casa, atualmente ocupada por sete raparigas. Por exemplo, a nova geração da casa não gosta da última estrofe do hino, mas recusa alterá-lo para não “apagarem o percurso da casa e de onde vêm como coletivo”. Ana Rui Fonseca resume assim o espírito de uma república: “São casas autogeridas com um sentido, vida e esforço comunitários, e que têm sempre uma característica muito geracional.” E há algo que é certo: quem faz a república são sempre as pessoas que lá vivem.
Na república Corsários da Ilha, fundada em 1958 por oito estudantes açorianos num prédio de quatro andares, a vida comunitária também é uma característica identitária. Se inicialmente era exclusiva para rapazes, com os tempos passou a ser mista. Agora vivem na casa uma rapariga e quatro rapazes.
Na década de 90 do século passado ficou associada à “música punk e ao rock chunga” e depois desapareceu do panorama das repúblicas por uns tempos, voltando já no novo século. Hoje, o principal objetivo dos “repúblicos” da casa – nome dado a quem vive numa república – é avançar com remodelações, depois de anos sucessivos de degradação.
“Estamos a tentar recuperar a casa ao máximo”, conta Inês Capelo, que faz questão de explicar que na república não há relações hierárquicas nem porta-vozes, por isso fala apenas a título pessoal. Para poderem melhorar a casa têm organizado festas para arrecadarem fundos e utilizam o excedente da renda. Há ainda uma particularidade: os Corsários têm a preocupação de ceder um espaço na casa com sistema de som para que as bandas que queiram ensaiar o possam fazer sem terem de alugar um espaço.
A ameaça de Bolonha
A reforma de Bolonha veio dificultar a transição entre gerações, fazendo com que histórias e memórias se perdessem no tempo. “Ficar cinco ou três anos faz toda a diferença e isso trouxe alguns problemas às casas em termos de continuidade”, diz Ana Rui Fonseca. Ainda assim, na Rosa Luxemburgo têm conseguido preservar os pilares da fundação: os valores feministas e antipraxe continuam a ser duas marcas na identidade da república. “Houve transformações sem colocarmos em causa o fundamental da casa”, resume Gabriela Rocha, de 32 anos e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais.
Enquanto tentam debelar os desafios, há uma espécie de preconceito ou, pelo menos, de desconhecimento que parece não desaparecer com o tempo. “Existe uma interpretação errada do que são as repúblicas”, lamenta Ana, acrescentando que a maioria das pessoas ainda hoje as reduz a festas e a um ambiente boémio. “Viver numa república não é só festas e vida boémia. É também toda uma carga de responsabilidades associadas a viver em comunidade”, acrescenta Inês Capelo. “Uma das razões para a aparência de caos é justamente a autonomia e a autogestão de cada república, além de ter as suas próprias regras”, explica Gabriela – um fenómeno social e cultural que representa uma contracultura em Coimbra, pequenos focos de resistência onde o “individualismo, o consumismo e a competição” não dominam, argumenta.
E como qualquer fenómeno simbólico, não estão fechados. Numa das paredes da Rosa Luxemburgo podem ver-se os cartazes das várias iniciativas que organizaram nos últimos meses, como debates, festivais e festas à mistura. “Queremos que este espaço seja também de quebra do contexto académico, um espaço de conversa informal” onde os e as estudantes – e quem não o seja – possam discutir a realidade que os rodeia sem preconceitos ou medos”, diz Ana Rui Fonseca. “A nossa casa acaba por ser uma das que tomam nas suas mãos a tarefa de alargar o feminismo” – um feminismo que não se limite a declarações, mas que procure alterar a realidade que o rodeia.
Se, à primeira vista, a vida na casa pode parecer mesmo um caos, rapidamente se percebe que existem regras bem definidas, seja na distribuição das tarefas, seja nos deveres relacionados com comportamentos e respeito interpessoal.
Por o “mundo lá fora não ser um espaço seguro”, as repúblicas sentem que não podem manter uma postura de neutralidade. “Como feministas, temos de manter a casa como espaço seguro” – uma pequena bolha do mundo que gostariam de ter lá fora. Por isso, uma das principais regras é que qualquer homem que leve uma mulher a deixar de circular na casa não será mais bem-vindo, diz Ana. “É a perspetiva da casa como espaço seguro, não só de uma agressão física mas também psicológica”, acrescenta Gabriela.
As repúblicas são também espaços de solidariedade e de entreajuda em que existe um equilíbrio entre a individualidade e o coletivo. “Se alguém precisar de um sítio para ficar por alguns dias até arranjar casa, pode ficar nas repúblicas”, diz Sabrina Carilo, de 18 anos e estudante de Estudos Artísticos. Como que evocando as palavras de Zeca Afonso “traz outro amigo também” – e também ele foi estudante de Coimbra -, as repúblicas estão sempre de portas abertas para quem quiser almoçar ou jantar.
Viver em comunidade nem sempre é fácil e os conflitos tendem, por vezes, a surgir de pequenas coisas do dia-a-dia. Além das regras da casa, as repúblicas da Rosa fazem “reuniões todas as semanas e esse é o momento de crítica e autocrítica do coletivo”. explica Ana. E a ideia de que demasiadas mulheres juntas dão origem a ambientes de tensão? Ana responde que “é um mito patriarcal”. Acredita, pelo contrário, que muitas mulheres juntas resultam em muita organização, respeito mútuo e numa força construtiva como nunca viu nos outros coletivos em que já participou.
Há vários anos que o Gabinete de Ação Social dá um cabaz semanal de alimentos às repúblicas para que os estudantes que precisarem possam ir fazer refeições nas casas. “Isto vem do tempo em que as cantinas estavam em rutura. As repúblicas, já que eram casas de portas abertas, acabaram por ser também um instrumento para alimentar a comunidade estudantil”, recorda Ana. A situação parece não ter mudado nos últimos anos, com o “encerramento de cantinas” da universidade e “filas enormes” nas que ainda têm as portas abertas. “Estamos sempre a relembrar as pessoas de que as repúblicas são também uma forma de ação social”, onde os convidados não se limitam a comer e ir embora, mas participam na vida da casa se assim o quiserem.
Até porque as repúblicas são algo que apenas pode ser descoberto por dentro, e nunca por fora. E as portas estão sempre abertas a quem vier por bem.