Esta fotografia foi tirada pela minha amiga Ana, no Funchal. A frase, escrita numa vasta parede branca, na Rua do Castanheiro, afirma: «O vazio ocupa muito espaço». Foi durante as férias dela que se lembrou de nós – de mim e dos leitores – e fotografou uma das mais belas frases pintadas na rua. Foi durante as férias dela que teve oportunidade de ver novas paisagens exteriores e, espero (sei que sim!), novas paisagens interiores, porque, como diz Tolentino Mendonça: «As viagens não são só exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o homem viaja. Fazer uma deslocação comporta uma mudança de posição, uma maturação do olhar, abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens, um confronto, um diálogo, inquietante ou encantado, que necessariamente deixa impressões muito profundas. A experiência da viagem é experiência da fronteira e de novos espaços, de que o homem tem necessidade para ser ele próprio».
Na realidade, qualquer viagem geográfica que façamos é também uma viagem que empreendemos ao nosso interior, à forma como somos capazes de lidar com a alteridade, como sabemos ou conseguimos aceitar tudo o que de novo é colocado perante os nossos sentidos. Qualquer viagem é, pois, uma viagem à forma como nos encaramos a nós próprios numa outra situação, numa outra paisagem.
E esta viagem à Madeira trouxe até nós uma frase plena de sentido, escrita de forma muito clara, numa vasta parede, marcada por uma janela – um cenário bucólico, poético, quase encenado e, simultaneamente, tão real.
Como diz a frase: «o vazio ocupa muito espaço». Trata-se de uma constatação filosófica de que efetivamente o vazio (algo que, aparentemente, não existe; a negação de tudo) acaba por ocupar muito espaço, demasiado espaço. Sobretudo se o espaço a que nos referimos for o interior. Manoel Leite de Barros diz, poeticamente: «A mãe reparou que o menino / gostava mais do vazio / do que do cheio. / Falava que os vazios são maiores / e até infinitos»…
Quando alguém tem uma sensação de vazio, essa sensação acaba por ocupar todo o ser, por dominar sentimentos e pensamentos, tornando-se num «vazio completo», ou seja, num vazio totalmente preenchido; logo, na antítese de vazio… É como um sótão desabitado e escuro, totalmente ocupado pelo medo que sentimos de ficarmos sós.
Como refere Sérgio Godinho no seu romance Coração Mais Que Perfeito: «"Temos o trilho. Falta-nos o mapa", Álvaro Lapa. Tinha sido tantas vezes assim, na sua vida. E muitas vezes assim na vida de muitos de nós». Sabemos o caminho que temos de percorrer, mas não sabemos mover-nos sem mapa, sem indicações dos outros, ou de nós próprios, e ficamos presos numa inércia que nos condiciona, e que acaba por esvaziar a vida de sentido e esvaziar-nos a nós próprios, por dentro. E é esse vazio que vai crescendo e ocupando cada vez mais espaço.
Temos, pois, de saber contrariar este movimento e dar sentido às nossas ações, às nossas atitudes, aos nossos sentimentos. Temos de ter a certeza que tinha Etty Hillesum, «uma das grandes vozes espirituais da contemporaneidade, morta em Auschwitz»: «A vida é difícil, mas isso não faz mal». Trata-se de uma afirmação fortíssima. E, como diz Tolentino Mendonça, numa crónica no Expresso, a propósito desta afirmação: «Ou melhor, não é isso que nos faz mal. Porque depressa aprendemos, como ela aprendeu, que sobre aqueles segmentos de caminho interrompido por arame farpado não deixa de existir o mesmo céu que cobre os maravilhosos campos desimpedidos, o vasto céu que bloqueio algum é capaz de interromper.»
E esta certeza, colocada numa perspetiva tão poética e bonita, dá-nos a verdadeira dimensão do valor da vida humana, que tem de ser superior a eventuais sensações de vazio, «obrigando-nos» a repensar o modo como encaramos as dificuldades, levantando os olhos para o céu imenso que nos cobre.
E, antes de nos revoltarmos contra o que nos acontece e criticarmos os outros, melhor seria se tentássemos superá-los, superando-nos, assim, a nós próprios…