Há um estranho vírus que se propaga pelo Largo do Rato. Chama-se vergonha. Este vírus aflige dirigentes socialistas e um dos sintomas é a grave amnésia seletiva que causa nos atingidos. Até estranhei a ausência de comunicado das entidades oficiais de saúde, que costumam fazer os necessários alertas para a saúde pública. Mas neste caso o universo é bem circunscrito.
Importa analisar a tentativa orquestrada de exibir ‘vergonha’ pelos casos judiciais em que estão envolvidos ex-governantes socialistas, do ex-ministro Manuel Pinho até ao ex-primeiro-ministro José Sócrates. A catadupa de declarações ‘embaraçadas’ com esta herança socialista do passado não é nada mais que uma simulação, quiçá fruto de uma sugestão dos focus groups que António Costa tanto gosta de utilizar para conduzir a sua política.
É provável que o leitor mais sensível a este vírus socialista me lance a resposta automática de acordo com a qual não há exclusividade socialista no fenómeno da corrupção. Certo. Ninguém omite que escândalos de corrupção varreram vários partidos. Contudo, o que torna este caso mais grave é que pela primeira vez envolve o ex-líder de um partido e ex-primeiro-ministro. Um homem que detinha uma influência incomparável sobre a comunicação social e sobre o país, cujas políticas e decisões – à luz dos casos judiciais em mão – podem e devem ser questionadas. Aliás, convém não esquecer que foi precisamente o Governo socialista de Sócrates que conduziu o país à bancarrota e à necessidade de pedir um resgate internacional.
O mais recente desplante socialista levou inclusivamente ao atual primeiro-ministro António Costa a acusar o líder parlamentar do PSD de «deslealdade parlamentar» por ter «ousado» trazer esta temática ao debate quinzenal desta semana.
António Costa escudou-se assim na sua função governativa, como se nada tivesse a ver com o partido que também lidera. Aliás, também como se nada tivesse a ver com o Governo de José Sócrates onde foi Ministro da Administração Interna. É esta a amnésia seletiva à qual me referia nos sintomas deste vírus. Com este género de afirmações, Costa só demonstra que lá no fundo e na prática, Sócrates e Companhia continuam a ser um assunto tabu no seu partido.
Demonstra também outro aspeto muito preocupante para a nossa democracia. Que o PS não está nem preparado nem interessado para – com seriedade e profundidade – fazer a urgente terapia interna para a eliminação do seu verdadeiro vírus, relativamente às graves consequências destas acusações de práticas de corrupção.
Vejamos o que aconteceu no panorama partidário em vários países europeus após os terramotos políticos causados pelos escândalos de corrupção. Inevitavelmente conduzem a um aumento de personagens políticas supostamente antissistema que são catapultados pelo eleitor a lugares cimeiros, precisamente pelas suas promessas de combater a corrupção na esfera pública. Um objetivo que por si só é louvável, mas que nestes contextos geralmente vem simbioticamente acompanhado por ondas de movimentos populistas.
E, pela inação e pela ‘vergonha’, o PS prefere não tocar no âmago da matéria, arriscando que se repitam cá os cenários já vividos noutros países europeus. Sr. primeiro-ministro: «Deslealdade» é ignorar este assunto de tamanha importância para o funcionamento da democracia. Porque o que se exige é uma total lealdade à democracia que é de todos.