Nasceu e viveu sempre em Portugal, mas não tem nacionalidade portuguesa. Nelson, de 25 anos, é mediador social. Traz sempre consigo um documento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para se poder identificar caso seja interpelado pelas autoridades. “O primeiro documento do SEF que tive foi aos 12 anos e até hoje nada”, explica. Vive num labirinto burocrático: de tempos a tempos, tem de se dirigir aos SEF para renovar o documento de identificação, uma simples folha A4, como o i pôde constatar. “Arranjar emprego, inscrição na Segurança Social, carta de condução. Sem documentos não consigo fazer nada”, desabafa.
É para acabar com situações como esta que a “Campanha Por Outra Lei da Nacionalidade”, um movimento formado no ano passado, promete não baixar os braços. Na última sexta-feira, organizaram uma concentração em frente ao parlamento e não descartam novas ações no futuro. As reivindicações são há muito conhecidas, mas continuam sem ser ouvidas. Defendem que quem nasce em Portugal é português e ponto final e não veem com bons olhos a forma como o mais recente processo de alteração à Lei da Nacionalidade foi conduzido pela Assembleia da República. Criticam BE e PCP por não terem dado o apoio que deveriam ter dado para que a lei se tornasse verdadeiramente justa para quem nasceu e sempre viveu em Portugal, mas a quem é sistematicamente negada a nacionalidade.
“Pretendemos que todos os nascidos em Portugal, independentemente da origem e situação [legal] dos pais, sejam considerados cidadãos portugueses no momento do nascimento”, disse José Pereira, de 40 anos e um dos organizadores do movimento.
Ainda que esta seja a principal reivindicação, não é a única. A campanha quer também alterar a situação legal dos nascidos em Portugal entre 1981 e 2006, quando a lei da nacionalidade deixou de contemplar o princípio do ius soli – princípio pelo qual uma nacionalidade é reconhecida conforme o lugar de nascimento – na plenitude. “Temos indicações de que muitas pessoas nascidas em Portugal de pais e mães moçambicanos, angolanos, guineenses e cabo-verdianos estão num labirinto burocrático que faz com que sejam consideradas, pelo Estado português, como imigrantes no seu território, apesar de terem nascido cá”, explica Pereira, referindo, de seguida, que a terceira reivindicação da campanha é alterar a lei para que cidadãos condenados a penas iguais ou superiores a três anos de prisão não possam ver impedido o acesso à nacionalidade portuguesa, impedimento que foi inserido na alteração à lei em abril. “Estas pessoas estão atualmente impedidas de aceder à nacionalidade, o que representa uma dupla condenação”, diz, acrescentando que a Constituição prevê a reinserção social de todos aqueles que cumpriram penas. “Não passa pela cabeça de ninguém retirar a nacionalidade a um nascido cá ou a um nascido de pai ou mãe portugueses só por ter cometido um crime”, conclui.
Em outubro, este movimento, que junta mais de 20 organizações de apoio a imigrantes, entregou uma petição à Assembleia da República para que a lei fosse discutida em plenário e alterada – o que veio efetivamente a acontecer, mas não nos moldes em que defendiam.
A última alteração à lei, em abril passado, estipulou que todos os filhos de estrangeiros que residam no país há mais de dois anos serão considerados portugueses originários, exceto se não o quiserem ser. E os pais de cidadãos portugueses poderão pedir a nacionalidade desde que vivam em Portugal há pelo menos cinco anos. A dispensa da prova de português para quem nasceu em países de língua oficial portuguesa também ficou definida na lei. Porém, não tem efeitos retroativos.
Para que estas alterações avançassem, BE, PCP, PS e PAN tiveram de retirar os seus projetos-lei, enquanto que o do PSD foi chumbado em plenário. O projeto lei aprovado consistia nas alterações defendidas pelo PS, excluindo a atribuição da nacionalidade a todas as pessoas que nasçam no país, independentemente da origem. “Se os parlamentares discutiram esta lei, foi graças à campanha”, diz Yussef, de 30 anos, membro do movimento. “A lei foi alterada nas nossas costas sabendo eles que havia uma petição e que foi a petição que originou a discussão na assembleia”, critica.
O ativista lamenta ainda a falta de apoio do BE e PCP: “A grande crítica que fazemos ao PCP e ao Bloco não é tanto terem deixado cair as suas propostas na discussão, mas de não terem mobilizado as suas bases e utilizado os canais próprios que têm, institucionais e mediáticos, para que chegasse a outro nível”.
Questionado sobre quantas pessoas nascidas em Portugal se encontram sem nacionalidade portuguesa, Yussef diz não haver números, mas acredita que seja um universo considerável. “Não podem votar, não podem ser eleitos. No campo económico, não podem ter acesso a determinados trabalhos e, no campo cultural, não têm a mesma facilidade de acesso ao ensino superior, à cultura e ao conhecimento”, explicou.
Vidas paradas Nelson prefere não responder o que sente perante a atual lei, que não resolve o seu problema nem apaga os últimos anos em que a sua identificação se resumiu a uma folha SEF, que serve para muito pouco. De uma coisa não tem dúvidas: “Considero-me mesmo português”. Entre a espera, o desânimo e a esperança, o jovem mediador cultural vai tentando construir a sua vida em torno de um “projeto de reabilitação social num bairro, mas sem contrato”. Para ter contrato, precisava de documentos.
Também Eugénio Silva, de 36 anos e dirigente de uma associação comunitária, diz ter a mesma dificuldade em avançar com a sua vida. “Tudo o que envolve documentos tenho de pedir sempre a terceiros”, diz, acrescentando que já teve de pedir crédito por intermédio de outras pessoas.
Eugénio, de nacionalidade cabo-verdiana, veio para Portugal com quatro anos de idade. A viver no país há 32 anos, está entre aqueles que não conseguem aceder à nacionalidade por terem cumprido uma pena de prisão, mesmo que mais tarde endireitem as suas vidas.
Eugénio cumpriu uma pena de cinco anos e meio por ofensa à integridade física. Quando saiu da prisão, teve alguma dificuldade em encontrar trabalho, mas lá conseguiu. Entregou tudo ao SEF para aceder à nacionalidade, mas a resposta foi negativa, por ter cumprido uma pena superior a três anos. Hoje diz que esse período da sua vida já não representa aquilo que é, embora para o Estado continue a defini-lo. “Abrimos uma associação de moradores gerida por jovens e fazemos trabalho em prol da comunidade, como limpeza das ruas, levar crianças a passear e dar apoio escolar”, conta. ´
Eugénio sente a “vida parada” por falta de documentos, mas se algum dia precisar de sair do país tem o passaporte cabo-verdiano. Domingos Silva nem isso pode dizer. Tem 32 anos, é jardineiro, nasceu em Portugal mas nunca conseguiu nacionalidade portuguesa.
Não é o caso de Domingos Silva, de 32 anos e jardineiro. Nasceu em Portugal, filho de pais imigrantes, mas vê-se impossibilitado de sair do país por não ter a nacionalidade portuguesa nem passaporte estrangeiro. Entre as memórias partilhadas, Domingos destaca uma que o marcou a sua infância. “Senti muito quando andava no ATL e houve um intercâmbio entre Portugal e Cabo Verde em que todos foram e eu fui o único que fiquei”, contou.
Agora, está um pouco mais perto de ter a nacionalidade portuguesa, principalmente desde que obteve residência temporária em 2013. Recentemente, deram-lhe autorização de residência por dois anos e com esta última espera alcançar os cinco anos de residência legal para se poder candidatar à cidadania portuguesa. Um impasse que vê com “revolta” por a mesma lei que o impede de ter os mesmos direitos que todos os portugueses permitir que existam “pessoas que não nasceram em Portugal e que nunca vieram a Portugal e que têm nacionalidade só por terem um avô português”, refere.
Domingos, que se considera “100% português”, não abandona a esperança de um dia assim ser considerado pelo Estado. Ter um simples papel que o reconheça como tal, pois de resto, diz, já o é, até nos planos. “Quero viajar pela Europa e encontrar-me com amigos que entretanto saíram do país e que nunca mais vi”.