O Supremo Tribunal de Justiça não vai fazer nada para travar a extradição de Raul Schmidt, o luso-brasileiro arguido no caso Lava Jato. Depois de muitos avanços e recuos, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que havia condições para que o suspeito fosse entregue às autoridades brasileiras e o i sabe que nem um requerimento enviado pela defesa ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça terá conseguido evitar a continuidade do processo de extradição.
O caso é complexo e é preciso recuar alguns meses para perceber porque é que o Tribunal da Relação decidiu avançar com o processo de extradição quando, numa decisão recente do Supremo Tribunal de Justiça, era referido que já tinha sido ultrapassado o prazo legal.
Raul Schmidt – acusado pelo Ministério Público brasileiro dos crimes de corrupção, organização criminosa e branqueamento de capitais – defende que conseguiu a nacionalidade portuguesa de origem ao abrigo da nova lei da nacionalidade (já depois de decidida a extradição) e que isso torna impossível a sua extradição.
Na sequência de vários recursos, o arguido viu as diversas instâncias decidirem pela extradição, tendo em conta os pressupostos iniciais – os crimes por que será julgado no Brasil são anteriores a 2014, altura em que não tinha ainda nacionalidade portuguesa.
Ainda assim, quando já tinha transitado em julgado a decisão relativa à extradição, a defesa interpôs um habeas corpus – pedido de libertação imediata – para o Supremo, que, além de aceitar a libertação referia que o prazo para extraditar o arguido já há muito tinha sido ultrapassado – indicando que o limite para a entrega do arguido às autoridades brasileiras era 26 de março. Esta decisão – datada do início deste mês -, além de ser relativa a um habeas corpus e de não ser expetável que visasse a matéria da extradição (era só sobre a libertação do arguido), contrariava a anterior do próprio Supremo, que tinha já deixado claro que a extradição era para prosseguir.
Relação avançou com extradição no início de maio O Tribunal da Relação de Lisboa não teve dúvidas em avançar com o processo. Numa decisão do desembargador Augusto Lourenço a que o i teve acesso pode mesmo ler-se: “Daqui nos parece resultar, salvo o devido respeito, que a interpretação feita, quanto a prazos, pelo acórdão [o último do Supremo] não é coincidente com a do acórdão proferido em 12.04.2018 [também do Supremo], pois de outra forma não se entende que se tivesse ordenado a prisão para entrega naquela data (12.04.2018), quando [no último acórdão] se defende que o prazo de 45 dias expirou a 26.03.2018.”
O desembargador refere mesmo que “os dois acórdãos são emanados da mais alta instância judicial e têm o mesmo valor”, lembrando que as interpretações diferentes que existiram têm a ver com “a forma de os contar e relevância ou não, que têm ou devem ter, as suspensões ocorridas por exclusiva intervenção do arguido extraditando” – recursos que o magistrado diz mesmo terem um objetivo: o de “esgotar esses prazos”.
Defesa queixa-se da Relação ao presidente do Supremo Num requerimento enviado a 18 de maio pelo advogado Alexandre Mota Pinto para o Supremo é referido que havia “indícios sérios e muito fundados, de que o Exm.o Senhor Juiz Desembargador [da Relação de Lisboa] titular do processo” teria violado “a decisão do habeas corpus” – isto porque tinha transmitido “à Polícia Judiciária ordem de execução de mandados de desligamento, através da detenção do Requerente e da sua condução ao aeroporto para entrega às autoridades brasileiras”.
O documento elenca inclusivamente tentativas de contacto da Polícia Judiciária com Raul Schmidt, não concretizados – o advogado ofereceu-se para comparecer, o que lhe terá sido negado. “O mandatário informou, então, que não sabe onde o seu constituinte se encontra, uma vez que este está a usufruir da liberdade que lhe foi devolvida e se encontra protegida por acórdão de habeas corpus”, afirmou. Segundo referiu no documento enviado ao presidente do Supremo, o advogado Alexandre Mota Pinto ainda disse à PJ que tentaria localizar o cliente se lhe fosse garantido que não seria detido, o que lhe terá sido negado pelo inspetor da PJ: “Sr. dr., não lhe posso dizer isso.”
O pedido feito ao presidente do Supremo para travar o processo de extradição não surtiu, porém, efeitos. O i sabe que António Henriques Gaspar decidiu ontem que “o expediente recebido não permite identificar qual o meio processual que o exponente pretende utilizar, nem enuncia qualquer fundamento que seja apto a apreciar petição judicial que integre a competência do Supremo Tribunal de Justiça”. O presidente do Supremo clarifica mesmo que o requerido “nem reveste a natureza de um pedido de habeas corpus nem constitui uma petição de recurso que possa ser distribuída”.
Quase em simultâneo, a defesa deu entrada com um outro pedido no Supremo, desta vez dirigido ao juiz que decidiu o habeas corpus, pedindo que ordene com urgência o cumprimento da sua decisão – uma decisão que acontecerá após o presidente do Supremo já ter tomado uma posição.
A interferência "insólita"
Quando a Relação de Lisboa decidiu prosseguir com a extradição, o juiz da Relação Augusto Lourenço mostrou-se perplexo com a interferência do governo neste caso. Isto porque o arguido tentou pôr em causa a fase administrativa do processo – que já tinha sido decidida pelo ministério – dizendo ser já português e ser impossível a extradição.
Dizendo ser “insólito”, o magistrado afirma que uma ordem do chefe de gabinete da ministra da Justiça suspendeu o processo, com o argumento de que tinha entrado uma cautelar administrativa. Deixou claro que o caso merece a atenção da PGR, por Portugal ser “um Estado de direito, com independência de poderes”.