Lita Cabellut. “Quando gostava das pessoas vendia os quadros por quase nada”

A obra de Lita Cabellut, a artista espanhola contemporânea que mais vende  no mundo, está em exposição no Centro Cultural de Cascais. Com uma vida que dava um filme – e que muitas vezes ofusca o trabalho de quatro décadas -, Lita diz que está feliz por, cada vez mais, o interesse se dirigir à…

Primeiro, chamou a atenção pela sua história. Não havia jornalista que a procurasse que não fosse para falar dos anos de infância e dos primeiros da adolescência. Convenhamos – que não (n)os podemos culpar. É que o início de vida altamente atípico de Lita Cabellut soa mais a guião do que a vida. Nasceu em 1961 na zona de Huesca e tem ascendência cigana. Viveu em Barcelona até aos 12 anos, em condições deploráveis – diz–se que a mãe era prostituta, algo de que Lita não fala, que viveu com a avó e muitos irmãos e que chegou a pedir nas ruas. Depois de uma passagem por um orfanato em Sabadell, acabou por ser adotada por uma família de Madrid. Aos 13 anos levaram-na ao Museu do Prado. Lita ainda não sabia escrever e descobriu na arte uma forma de se expressar. “Foi como se me tivessem dado uma língua”, diz-nos, relembrando que identificou imediatamente a violência de Goya, um sentimento que conhecia mas para o qual não tinha palavras. A partir daí começou a ter aulas de pintura e aos 19 anos parte para estudar na Academia Gerrit Rietveld, em Amesterdão, cidade onde ainda hoje vive. “Até aos 19 anos ia ao Prado todos os dias”, conta-nos numa entrevista por Skype a partir de Madrid, onde estava a propósito do lançamento do livro de Javier Santiso ilustrado com alguns dos seus quadros. 

Depois do sugados até ao tutano os pormenores da sua vida, a artista diz que está feliz por esse passado ser cada vez mais um apontamento e não o cerne das solicitações mediáticas que recebe. A sua obra já foi mostrada um pouco por todo o lado. Segundo o “El País”, é a artista espanhola mais cotada do mundo. E de acordo com a revista “Artprice”, só os artistas Miquel Barceló e Juan Muñoz vendem mais quadros do que Lita Cabellut.

O seu trabalho está agora pela primeira vez em Portugal, no Centro Cultural de Cascais (CCC). A exposição, que reúne obras de pintura, instalação e escultura – e à qual Lita chamou “Poetry Never Gives Up” -, foi organizada juntamente com a Fundação Dom Luís i e pode ser visitada até 17 de junho: uma mostra de 30 trabalhos de larga escala da artista que tem sempre como ponto de partida a mesma base: o ser humano.

Depois deste parênteses, passemos então a uma conversa centrada na (sua) arte.

Estava a dizer-me, antes de começarmos a gravar, que as últimas entrevistas têm sido melhores porque são sobre o seu trabalho e não sobre a sua infância. 

Sim. E isto é para mim um ponto muito importante. Acho que a infância – que, é claro, molda a pessoa – não é razão para nos tornarmos melhores ou piores nisto ou naquilo. Penso que a infância não justifica as escolhas que fazemos para nos tornarmos quem somos. Há muita, imensa boa arte que não veio de alguém com uma infância difícil. Estava à espera que, depois de tantas entrevistas sobre a pobreza, as pessoas começassem a interessar-se pela arte por trás da história dessa criança. É que por trás dessa história está uma mulher que fez uma carreira como todas as mulheres, com a mesma inspiração e força para se tornar a pessoa que escolheu ser.

Mas é a primeira a assumir que tem uma história de vida muito fora do comum.

Não. Contei a minha história pela primeira vez a um amigo muito próximo há 20 anos. Depois houve uma altura em que ele se sentiu inspirado e quis ser escritor. Pôs a minha história na internet e os jornalistas ligaram-me a perguntar se era verdade. Claro que respondi que sim, nunca iria contar coisas que não fossem verdadeiras. E foi a única coisa que disse sobre o assunto, que se foi tornando cada vez maior até chegarmos a um ponto em que tenho força suficiente para dizer: não quero falar mais sobre isso. 

Foi como uma bola de neve?

Exatamente.

Quando foi a primeira vez que segurou um pincel?

Tinha 13 anos.

Lembra-se do que pintou?

Não. Lembro-me de para mim ser muito difícil. O meu professor mandava-me apenas fazer composições de cor. Proibiu-me de pintar imagens figurativas porque dizia que antes de pintar figuras precisava de usar os materiais, precisava de os dominar. Depois disso quis ensinar-me a olhar com atenção para as coisas à minha volta. E só depois disso pude começar com os rascunhos e, finalmente, depois disto tudo, com a pintura. Foi um longo processo até me ser permitido pintar! (risos)

Goya e Velásquez são dois artistas que admira e de que fala repetidamente. Lembra-se da primeira vez que os viu no Prado?

Perfeitamente. Fiquei muito impressionada com a ambiência e as roupas retratadas por Velásquez, com todos os efeitos das sedas e dos tecidos e até a maravilhosa maneira como as pessoas posaram para ele. E Goya, para mim, foi muito intenso porque reconheci tantas coisas destes quadros tão, tão negros. Toda a monstruosidade, o grotesco, o preto e o branco. Foi muito impactante para mim. 

E a escala, sentiu que era avassaladora ou como a descreve?

Avassaladora, sim. Foi algo tão intenso: por um lado, de choque; por outro tive a sensação de que tinha uma nova vida, que tinha uma nova forma de comunicação, uma nova forma de expressão. Para mim foi como se alguém me desse uma língua para falar. 

Sabe quantas vezes voltou ao Prado?

Não faço ideia, imensas. Desde os 13 até aos 19 anos estive lá recorrentemente. Ia a casa dormir e ia para o Prado. (risos) Vivia lá perto nessa altura.

Escolheu pintar a óleo. Porque se tornou este material o mais importante para si, no meio de tantas outras opções?

Comecei por aí, mas hoje não pinto só com óleo, pinto com tudo. Pinto com aerógrafo, com as tintas e sprays da arte urbana e com muitos outros materiais. Misturo técnicas muito, muito antigas com outras novas. Sou até a melhor cliente na loja de graffiti em Amesterdão. (risos) É verdade. No outro dia perguntaram-me [na loja] porque estava a pintar com estes materiais e não acreditavam que eu podia pintar de uma forma tão figurativa e clássica com eles. Os artistas usam o material cada um da sua forma, não o contrário.

Ou seja apropria-se dos diferentes materiais para o que quer fazer.

Exatamente. 

Li que também trabalhou com especialistas para desenvolver alguns materiais. Quando começou isso e porquê?

Há 20 anos comecei a trabalhar com cientistas para me ajudarem, porque queria usar materiais diferentes e precisava de saber se esses materiais iam funcionar e, com o passar dos anos, não iam perder qualidades. Por isso precisava da aprovação dos especialistas e que me dissessem: “Ok, Lita, os materiais que está a usar são à prova do tempo. A história não fará danos.” (risos) 

Figurativamente pinta de uma forma clássica, mas com os materiais mais modernos que existem, então.

Sou uma artista muito contemporânea. Mas também penso: claro que se o Velásquez aqui estivesse hoje, também ia usar estes mesmos materiais que procuro usar. Nós, os artistas, estamos em contacto com as ferramentas, as pessoas, a informação que nos rodeia. Eu não vivo no passado. Aprendi muito com os grandes mestres do passado, mas agora preciso de beber do que se passa hoje. Trabalhar a partir de matéria que ocorreu há 100 anos não é sistema para ninguém. Precisamos de estar completamente por dentro do que se passa hoje e ser parte do sistema.

A sua primeira exposição em Espanha foi apenas no ano passado, numa altura em que já tinha mostrado os seus trabalhos em sítios como Hong Kong, Nova Iorque, vários locais da Holanda e em muitos outros países. 

Todos, exceto em Espanha, onde não era visível. A Lita existia em Espanha talvez para umas dez pessoas. E o que mudou é que comecei a ter um apoio incrível da comunicação social, primeiro com a história da minha infância, mas depois houve um momento em que começou a haver respeito pelo meu trabalho. E isso foi quando comecei a dizer: “Por favor, não sou só isso, sou mais do que isso.” Estou muito grata a quem me ouviu e conseguiu dizer: “Ok, o nosso interesse começou por ouvir a sua história, que também é muito interessante pela sua mensagem sobre a arte, sobre a beleza e sobre como se pode ser melhor pessoa a olhar para a arte e a perceber as composições, mas agora vamos olhar para o que faz.” 

Em média, quanto tempo passa em cada trabalho?

Costumo dizer que são uns 45 anos. Isto porque cada peça contém tantos pensamentos, movimentos. Na arte há uma coisa… tu repetes e repetes e repetes cada movimento e, um dia, tornas-te um mestre, dominas o que estás a fazer. E, quando isso acontece, tu és o primeiro a saber exatamente o que fazer com todos os materiais e as tuas mãos, tens o controlo dos teus pensamentos no momento em que estás a criar. Mas, antes disso, tu precisas de milhões de repetições da mesma coisa. Para mim, portanto, é um prólogo de um trabalho longuíssimo. Sinto que estou a pintar as mesmas pinturas a minha vida toda. 

Sente que já as domina ou que ainda está a aprender?

Acho que sou mestra em craftship, sou mestra nas ferramentas, no óleo, na composição. Penso que, em termos de materiais, sou mestra. Mas o conceito, o significado, a investigação para nunca me repetir ou autocopiar, nisso penso que estou sempre no início de um processo. Sou mestra no craftship e uma estudante muito nova na criação. 

Duas idades, então. 

Exatamente. E sinto mesmo isso. Uma parte de mim é completamente experiente e cheia de conhecimento, a outra parte surpreende-me pela quantidade de coisas que preciso de saber para ir e descobrir respostas que estão muito, muito longe. 

Qual foi o primeiro quadro que vendeu, lembra-se?

Perfeitamente. Era muito, muito nova, tinha 16 anos, e fui para o metro expor as minhas obras. E de repente vem um homem e compra uma paisagem que eu tinha feito – isto ainda foi em Espanha. Fiquei completamente chocada e senti–me muito envergonhada por ganhar dinheiro por uma coisa que fiz com tanto entusiasmo e amor. 

Lembra-se de quanto ele pagou?

Não sei, tenho a certeza de que não foi muito, mas nessa altura, para mim, foi demasiado! E tenho que dizer que mesmo agora, quando me compram os meus quadros, sinto-me ainda um bocadinho envergonhada, não me habituo a que as pessoas paguem por algo de que gosto tanto. Agora tenho pessoas à minha volta que tratam desses assuntos, porque só faço maus negócios. Às vezes pedia muito dinheiro e, outras, uma quantia ridiculamente baixa, e perguntavam-me porquê. Eu não sei, nunca soube porque fazia isto. Quando gostava das pessoas vendia os quadros por quase nada, se não gostasse muito do comprador não queria, na verdade, vender o quadro – e pedia muito. 

E agora é a Lita que escolhe o preço dos seus quadros?

Não, não sou eu. Tenho aconselhamento e o preço estabilizou, mas não estou autorizada a falar com as pessoas sobre o preço dos meus quadros. 

No seu site define-se como uma contadora de histórias, mais do que como uma pintora. 

Absolutamente.

Que história ainda não contou?

Não sei. Estou à espera de saber que história virá. Isto é o surpreendente na arte. Pensamos ok, sinto-me completamente vazio, errante, e de repente uma pessoa passa a estrada, ou trocamos um olhar com alguém, ou cheiramos alguém que nos emocione… e de repente aparece a história.

A inspiração pode vir de todo o lado?

De todo, mas para mim parte sempre do mesmo lugar: do ser humano. Sempre. Gosto muito da natureza, das coisas boas da vida, mas nada me dá tanta inspiração como o ser humano. Nada fala de mim tão claramente como o ser humano.

Já que falou que a sua inspiração são os seres humanos, e como esteve em cá recentemente, tenho de lhe perguntar: o que achou da essência dos portugueses?

Ainda bem que me perguntou isso. Estava num restaurante, numa apresentação, com pessoas muito interessantes que também me perguntaram o que achava de Portugal. E eu respondi que adorei porque acho que as pessoas são silenciosas porque observam as coisas. Os portugueses não são ruidosos porque estão a sentir e a pensar.