“As memórias já não vivem aqui”

A ausência de memórias é quase impossível, porque todos guardamos memória daquilo que de bom ou de mau nos acontece

Esta fotografia, tirada pela minha amiga Eulália, na zona da Amadora, afirma que «As memórias já não vivem aqui».

Não sei bem o que esta frase poderá significar. Talvez o seu autor tivesse morado naquele local antes de ter mudado para outra casa e, por este motivo, considere que as suas memórias já não moram ali, porque foram com ele e já nada o prende àquele local. Ou, então, vivia com alguém, e a frase é um aviso para quem saiu de casa: diz-lhe que já não faz falta, porque já não há memória dele/a ali. Seja qual for a situação que originou a frase, há um certo apontamento de tristeza no tom, que passa para quem a lê.

A ausência de memórias é quase impossível, porque todos guardamos memória daquilo que de bom ou de mau nos acontece. A forma e a intensidade como recordamos estes eventos é que varia.

Como diz a jornalista Inês Cardoso: «As memórias permitem-nos agarrar pedaços do passado e carregar luz sempre connosco. Como camadas sucessivas, que nos vão dando profundidade. Não se trata de estar sempre a olhar para trás, porque o caminho se faz andando em frente. Mas de saber que somos feitos de tudo o que nos vai marcando e inscrevendo sentimentos em nós. Essas marcas, sem nos apercebermos, vão-nos ajudando a escolher o que fazemos com a vida. Quanto mais fortes e carregadas de mundo forem essas camadas, mais profundo será o nosso presente. Não somos: vamos sendo, com tudo o que de momento nos molda e nos faz. E fotografia nenhuma capta essa verdade tão indefinível. É verdadeiramente dentro de nós que tudo se passa».

Na realidade, são as memórias que vão constituindo o nosso repositório de vivências e emoções, e é recorrendo a elas que vamos tomando decisões ao longo da vida. É com base na memória individual e na memória coletiva (na cultura) que consolidamos o «edifício» da nossa personalidade. Como diz Unamuno: «A memória é a base da personalidade individual, assim como a tradição é base da personalidade coletiva de um povo.» E acrescenta: «Vive-se na recordação e pela recordação, e a nossa vida espiritual mais não é, no fundo, do que o esforço da nossa recordação para perseverar, para se fazer esperança, o esforço do nosso passado para se fazer futuro».

As memórias são fundamentais na estruturação da personalidade e todos precisamos delas. Não é, pois, possível deixarmos voluntariamente de ter memórias, dizendo que já não existem ou que já não são importantes. Assim, não é possível dizermos que «As memórias já não vivem aqui». Pelo contrário, o conselho que nos dá Ricardo Reis é: «Quanto faças, supremamente faze. / Mais vale, se a memória é quanto temos, / Lembrar muito que pouco. / E se o muito no pouco te é possível, / Mais ampla liberdade de lembrança / Te tornará teu dono.»

Por mais que queiramos esquecer, por mais que queiramos retirar o significado a alguma coisa, ou apagar o sentimento despertado por qualquer recordação, não podemos apagar as memórias. O que muitas vezes fazemos com aquilo que queremos esquecer é «enterrar» as recordações bem fundo, tapando-as com várias camadas de um cimento que julgamos bem sólido, desejando que elas fiquem lá para sempre e que não nos venham incomodar, voltando à tona.

Muitas vezes conseguimos fazê-lo. Mas acontece que, um dia, sem esperarmos, algo faz com que estas recordações voltem à superfície e nos magoem de novo. Outras vezes, conseguimos ignorar estas memórias e, até mesmo só porque o queremos, conseguimos esquecê-las. Tudo depende do caminho que escolhemos seguir. E o caminho muda o sentido da vida, muda o sentido do poema.

 

Maria Eugénia Leitão

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services