O Brasil está em processo de mudança. Depois de mais de uma década de poder do Partido dos Trabalhadores, que introduziu mudanças profundas no tecido social e tornou ligeiramente flexível um rígido sistema classista, dando esperança de ascensão aos mais pobres, há uma revolução conservadora a tomar forma, tão poderosa que ajudou a derrubar uma Presidente eleita, com ajuda de um mecanismo de destituição que deveria ser usado apenas para casos extremos de corrupção. «Não há nenhuma dúvida que está em curso uma revolução conservadora no Brasil», explica Lamia Oualalou, jornalista franco-marroquina, antiga chefe da secção da América Latina do Le Figaro, correspondente de vários médias franceses no Brasil durante uma década e que publicou há pouco tempo em França um livro sobre o crescimento dos cultos evangélicos no país, chamado Jesus T’Aime: La Déferlante evangélique.
(Jesus ama-te – A onda evangélica). «Essa revolução conservadora pode ver-se do ponto de vista religioso, pode ver-se pela roupa – no livro dedico um capítulo à moda evangélica, uma coisa impressionante que está ganhando espaço –, pode ver-se, também, nas questões de género – há uma batalha muito dura contra os avanços neste ponto de vista», acrescenta. É curioso que essa revolução seja mais visível porque existe «uma resistência maior» ao seu avanço. «Como o país está mais educado, como as pessoas tiveram mais possibilidades, existem mais grupos de resistência». Que, no entanto, apesar da sua mobilização, não conseguiram evitar que, de uma maneira geral, o Brasil esteja «mais conservador do que há dez anos, disso não tenho dúvida».
É paradoxal que sejam as conquistas do governo Lula a desencadear esta reação. «De repente, as portas se abriam» para uma multidão de pobres e remediados que não estavam habituados a ver portas abertas. E se tardaram a perceber que podiam entrar, desconfiados de décadas e décadas de vê-las sempre fechadas, quando entraram a paisagem mudou. Nas «universidades que nunca aceitaram negros, não na lei, mas nos factos», sentavam-se agora nas aulas os filhos das empregadas domésticas, dos porteiros do prédio.
«Foi muito pesado para uma parte da pequena classe média, que não ganhou muito do ponto de vista financeiro e perdeu muito do ponto de vista simbólico». Subitamente, os filhos estudavam com o filho da faxineira que, muitas vezes, já nem sequer tinham, porque o Governo aprovou uma lei que os obrigou a pagar segurança social à empregada doméstica, «perdendo um elemento simbólico do poder».
Muita dessa pequena classe média vestiu-se do verde e amarelo da bandeira para festejar na rua o impeachment, recebeu de braços abertos a intervenção militar no Rio de Janeiro e chega a clamar em nome de Deus pelo regresso da ditadura. Daí se vê o muito apoio que Jair Bolsonaro, militar protofascista, misógino e louvaminhas da ditadura militar, recebe em todas as sondagens, onde surge sempre em segundo lugar atrás do preso Lula da Silva.
«A população aceitar da maneira mais fácil chacinas de grupos de pessoas pobres ou a polícia fazer execuções, como se diz no Rio, ‘bandido bom é bandido morto’, isso diria que é o sinal dessa mudança conservadora», explica Lamia Oualalou, que no Brasil foi cofundadora do primeiro site de notícias internacionais do país, Opera Mundi, e da revista Samuel, uma espécie de Courier International brasileiro que durou apenas dois anos por dificuldades de distribuição.
Na atual greve dos camionistas, que parou o Brasil e vergou o Governo de Michel Temer, que cedeu em toda a linha e mesmo assim viu a paralisação continuar, já não conduzida pelo problema do aumento dos combustíveis, mas levada para campos de exigência de mudança política de um Executivo impopular e sem legitimidade, lá andavam a circular cartazes a pedir a intervenção dos militares, a lembrar os anos de chumbo da ditadura que esteve ao mando do país de 1964 a 1985. Mesmo quando a experiência do Rio está a correr tão mal: «Não está dando certo, é um desastre total», diz a jornalista, citando um artigo do Jornal do Brasil, onde se referia que com os militares no estado «duplicou a quantidade de chacinas».
Com tudo ainda imprevisível para as eleições presidenciais de outubro – mesmo com Lula na prisão, o PT ainda não descartou a possibilidade de o ex-presidente ser candidato, e são duas eleições distintas com e sem ele –, «os evangélicos têm o objetivo de duplicar a sua participação no Congresso. A participação deles hoje é grande, 87 a 89 deputados, mas não representa o seu peso na população», adianta. No censo religioso de 2010, a percentagem da população que se assumia evangélica era de 22%. No próximo, em 2020, esse valor será, com certeza mais alto. «Sabemos que os evangélicos são mais numerosos, mas não sabemos quanto, é provável que sejam mais de 30%», explica a autora, daí que eles pretendam que o espelho do Congresso reflita mais o seu peso social de quase um terço do país.
Bolsonaro é católico, mas é casado com uma evangélica e tem, por isso, uma relação muito próxima com os evangélicos. O ex-militar e Lula são os mais populares candidatos entre os fiéis; impedido o ex-chefe de Estado de se candidatar, não é difícil imaginar que o deputado da direita ganhe mais apoios – apesar de cumprir o seu sétimo mandato na Câmara dos Deputados tem conseguido passar uma imagem de outsider.
Desde 1992, com exceção de 2006 (um caso muito particular porque vários dos seus candidatos viram-se envolvidos num escândalo de corrupção), os evangélicos conseguiram sempre aumentar a sua participação no Congresso. «Não tenho dúvidas sobre a força dos evangélicos, mas é muito importante ver para que partidos vão e qual vai ser a dinâmica no partido e na coligação», algo impossível sem saber que candidatos teremos. Se Lula não estiver, «dá mais força ao Bolsonaro e isso pode impulsionar os evangélicos» para um bom resultado nas eleições, afirma Lamia Oualalou.
Num país onde «as coisas mudam muito rápido, as dinâmicas boas ou ruins vão a uma velocidade muito difícil de imaginar na Europa, mas também no resto da América Latina», qualquer futurologia é vã: «Acho que temos de esperar pelo menos até agosto para saber quem são os candidatos e ver mesmo o que vai acontecer».
Quase todos os deputados evangélicos votaram a favor do ‘impeachment’ de Dilma Rousseff
Saber se os deputados evangélicos tiveram um papel decisivo na destituição da Presidente Dilma Rousseff «é muito difícil dizer», refere, embora seja certo que «93% dos deputados evangélicos votaram pelo impeachment de Dilma e numa postura muito mais radical do que a maioria dos outros deputados», acrescenta. «E o mais surreal desse dia», nessa maratona de homens justificando o seu voto por entre uma confusão de apoiantes e detratores, é que Deus esteve na boca de muitos. Como não «fazia sentido» o processo, «porque ela não tinha cometido nenhum crime, era mais simples falar de Deus do que da realidade».
Ao mesmo tempo, essa jornada parlamentar na Câmara de Deputados mostrava «o peso da revolução conservadora, com Deus cada vez mais presente na vida das pessoas».
Lamia lembra que, ainda no tempo de Dilma, quando se perguntava aos mais pobres a que fatores atribuíam o sucesso do país, «a maioria falava no empenho pessoal e muitos mencionavam Deus em segundo». O governo só aparecia lá mais para a frente, «o que deveria ter advertido a Presidente de que não iriam defendê-la porque não achavam que ela fosse responsável pela situação deles».
Certo é que Dilma não percebeu, nem o PT, como não percebiam os amigos da jornalista, quando ela os alertava sobre os perigos da cultura e da política evangélicas para a sociedade brasileira. «Um dos problemas é que não perceberam a mudança. Eu nasci em Marrocos, um país onde a religião acabou tendo um peso social muito importante, o que me tornou mais sensível às mudanças nessa matéria do que o brasileiro comum», explica.
E o que temos é um Brasil que se foi tornando cada vez mais individual, porque na teologia da prosperidade evangélica «sou ‘eu e Deus’, eu tenho direito às coisas, vou conseguir ter um emprego melhor, ter uma família melhor, ter uma saúde melhor, se me esforçar, se for aos cultos e se pagar ao pastor». Com isso está a matar-se «toda a lógica coletiva, a única que pode fazer avançar um movimento progressista na América Latina.»
Só que por mais argumentos que o PT, a esquerda, a social-democracia, os movimentos sociais, possam arranjar para justificar o que aconteceu, «não era uma coisa escrita, não era uma fatalidade», porque o evangélico não é mais conservador que o católico. «O problema no Brasil é que os partidos e os movimentos de esquerda abandonaram essa população, não se interessaram por ela – os líderes do PT, na sua maioria, são católicos; não tem nenhum líder evangélico dentro do partido –», adotaram «uma visão muito discriminatória em relação» aos evangélicos. «Por muito tempo ninguém falou com eles e quando começaram a falar, porque perceberam o peso que tinham, os líderes da esquerda começaram a falar apenas com as lideranças religiosas – que são mais conservadoras –, não fazendo nenhum trabalho de base». Conclusão de todo este processo: «essa população, a mais pobre, que deveria ser a mais cobiçada pelos partidos progressistas, virou muito mais conservadora». E o «grande perigo» é que acabem por tornar «a sociedade cada vez mais intolerante».
«Não passa um dia sem que um terreiro de umbanda ou candomblé [religiões afro-brasileiras] seja atacado – virou uma coisa normal. Tem chacinas todo o tempo e é normal. Ninguém mais pode falar de aborto no Brasil. Nunca foi autorizado, a população sempre foi contra, mas agora está pior».
A parte da Igreja Católica
O Brasil está a tornar-se não só mais evangélico, como mais diverso do ponto de vista religioso e «a Igreja Católica já perdeu a ideia de ser o único poder que foi durante cinco séculos». Mesmo assim, contribuiu pela sua ação e inação no crescimento do fenómeno evangélico no Brasil. A crise católica foi campo generoso para o crescimento dos evangélicos. Culpa da decisão do Papa João Paulo II de acabar com a teologia da libertação, por a considerar comunista, «não deixando os bispos ditos progressistas trabalharem e cortando as comunidades eclesiásticas de base, que eram muito fortes e chegaram a ter um grande nível de capilaridade no país, com seis milhões de membros, entre padres religiosos e laicos com grande sensibilidade religiosa. O PT é um dos resultados disso, uma coligação de interesses de sindicatos e de outros, onde estavam religiosos progressistas católicos».
Com a chegada de Francisco, em 2013, o Vaticano voltou à lógica missionária, «mas tem muita dificuldade em aplicar isso» porque o Papa está longe e porque muitos dos «que estão mandando no Brasil foram escolhidos por João Paulo II ou por Bento XVI. Ele fala, mas o recado não chega até à base», diz Lamia Oualalou.
Finalmente, há ainda outro fator importante nesta mudança que diminuiu o peso da Igreja Católica na sociedade brasileira e que Lamia Oualalou relembra: a questão urbanística. «O Brasil era um país rural que virou um país só de cidades a uma velocidade incrível, fazendo em meio século aquilo que a França fez em três séculos. Começaram a aparecer todas as pequenas cidades do subúrbio, que são caóticas, não estão pensadas de forma clara em termos urbanísticos, crescem muito rápido. Tem uma cidade perto de Brasília que em dez anos passou de 3000 para 300 mil pessoas. E aí a Igreja Católica não tem capacidade de se adaptar», explica a jornalista.
Primeiro, por falta de padres – é preciso vocação, formação –, um fenómeno que não é brasileiro, mas mundial. Depois, porque a Igreja Católica continua a pensar em estar «na praça central, frente ao governo e ao banco – os três poderes». Só que muitos desses novos aglomerados urbanos nem sequer centro têm e os fiéis ficam sem templo consagrado. «Os evangélicos vão lá, pegam um bar que fechou, uma fábrica que fechou, um cinema que fechou e transformam-nos em igrejas, fazendo com que estejam muito presentes em todos os lugares». Muitas pessoas «decidiram deixar a religião Católica» porque «a mensagem já não lhes tocava», mas, também, «porque fisicamente não tinham uma igreja ao pé deles».
Além disso, «a força dos evangélicos é que entenderam como usar os média como os católicos nunca souberam fazer». Os evangélicos possuem «a capacidade de ter recursos diferentes para adaptar uma estratégia de marketing» e colocaram-se no centro da vida social, «porque o que as pessoas procuram é a vida social, mais do que o culto em si. Encontrar as pessoas, estar juntos, cantar juntos, rir juntos».
Lamia Oualalou
Nasceu em 1975 no seio de uma família de classe média alta de Marrocos. «totalmente marroquina, mas com uma cultura bastante francesa». Aos 17 anos foi estudar para Paris, numa business school «sem menor prazer», mas porque o nível de exigência era alto e ela sempre foi muito competitiva. Por prazer, tirou, isso sim, um curso de Literatura, especializando-se no século XVII. Só não acabou a tese, até porque já tinha começado a escrever para jornais e ficou «totalmente apanhada pelo trabalho». Entrou como jornalista de economia do Le Figaro até chegar a editora da secção de América Latina. Tinha um emprego bom, vivia em Paris, mas já se tinha apaixonado por Buenos Aires e o que lhe dava a Europa já não a satisfazia. E não fosse outra paixão, a do marido que conheceu entretanto na capital francesa, um italiano que vivera uma dezena de anos no Brasil, e ter-se-ia mudado para a Argentina. Acabaram por decidir ir para o Rio de Janeiro porque ele teria aí mais contactos. O marido começou a trabalhar na ONU, ela desdobrava-se em colaborações para a imprensa francesa. E acabou por se apaixonar pelo Brasil e pelo povo brasileiro – «um povo muito aberto», o que torna o trabalho jornalista mais fácil, mesmo tendo em conta «que o país é muito complexo, como falava o Tom Jobim, não é um país para principiantes». A filha de sete anos já nasceu no Rio e no ano passado Lamia Oualalou também passou a ser cidadã brasileira –«era muito importante para mim votar esse ano, é um país que realmente mudou a minha vida». Hoje é marroquina, francesa e brasileira. E pode não ficar por aqui, até porque há mais de um ano que vive no México, para onde a ONU enviou o marido. «Antes de lá ir morar, não gostava muito do Brasil. Gostava mais da Argentina, que continuo adorando. De repente, você começa a trabalhar e é engolido por esse país. É impressionante, não se pode ficar no meio do caminho». A ponto de hoje Lamia ser uma carioca que vive «cheia de saudades» lá no norte do continente americano.
Ficha do Livro
Jesus T’Aime
Lamia Oualalou
Les éditions du cerf
20 euros
O livro traz como subtítulo ‘A Onda Evangélica’ e fala sobre a grande mudança dos últimos anos no Brasil, uma vaga de conservadorismo que ameaça os progressos conseguidos desde o primeiro Governo de Lula. Os evangélicos já eram 22% da população no último censo há dez anos e hoje andam a caminho de ser um terço da população.