As memórias que os telemóveis não registaram

Universidade Nottingham Trent revela que, durante o dia, olhamos para o telemóvel 85 vezes

Ainda que a dependência do telemóvel não seja reconhecida como uma doença mental, é impossível ignorar uma certa tendência para o uso descontrolado do aparelho. Um estudo da Universidade Nottingham Trent revelou que, durante o dia, olhamos para o telemóvel 85 vezes e que esse hábito foi sendo cada vez maior com o aparecimento de telemóveis mais sofisticados: os smartphones.

Os estudos que abordam a tecnologia são muitos: em 2015, segundo a TeleGeography – empresa de pesquisa de mercado na área da telecomunicações – existiam, em todo o mundo, sete mil milhões de subscrições de comunicações móveis. Tantas como os habitantes do planeta. Há até uma fobia conhecida por nomofobia, que surge quando as pessoas ficam desconfortáveis com a falta de acesso à comunicação através do telemóvel ou computador.

Por isso, não se assuste quando alguém lhe disser que não pode viver sem o telemóvel. A professora e psicóloga clínica, Ivone Padrão, especialista na área das dependências da Internet, declarou à “Notícias Magazine” que muitas pessoas “estão familiarizadas com a tecnologia” a ponto de correrem o “risco de não conseguir desligar”. Mas a verdade é que as gerações mais antigas nasceram e cresceram sem acesso aos telemóveis. E viver nesta época, era tudo menos aborrecido.

O testemunho é Manuela Cutileiro, sexagenária. Nasceu em Óbidos e no seu tempo não havia quase nenhuma forma de tecnologia. Aos poucos foram surgindo novos objetos e nem os velhos telefones eram algum comum: tem memória de começar por exemplo a discar os números para iniciar uma chamada, mas nem sempre teve essa hipótese em casa.

Um dos familiares de Manuela possuía uma PBX – central telefónica – que na altura era bastante cara e era onde se concentravam os telefones da aldeia. Só existiam cerca de três telefones ligados e nem todos podiam utilizar.

Gravadas na memória ficaram ainda as fugas de casa com as amigas, para ir brincar com a PBX. Conseguiam ouvir a conversa das outras pessoas, o que “divertidíssimo”.

Cutileiro relembra que o conhecimento do mundo nessa época era muito relativo. As notícias chegavam sempre mais tarde e a comunicação entre as pessoas que se encontravam longe era muito demorada. Mas para ela, “vivia-se perfeitamente bem”. Quando emigrou uns meses para África: parecia que estava num mundo diferente. Foi na altura das inundações de 1967 na cidade de Lisboa e a sua família “não se apercebeu de nada”. Só mais tarde é que souberam da tragédia que abalou o país de onde partiram, através das cartas que chegaram meses depois.

Até podia existir menos comunicação, mas Manuela afirma que as crianças brincavam mais e, sobretudo, “estavam mais atentas ao que as rodeava”. Uma boa memória é que na sua aldeia em Óbidos as pessoas conheciam todos os vizinhos e gostavam de socializar. As grandes reuniões de pequenos e adultos que se faziam pelas ruas foi algo que se perdeu ao longo do tempo.

Em comparação com a atualidade, não há dúvidas de que a tecnologia deu um grande passo. Mas será que foram assim tantos os benefícios que esta evolução trouxe? Como muita gente que viveu mais tempo desligado do que nesta nova era, Manuela sente que as pessoas hoje gastam demasiado tempo ao telemóvel. Aquilo que lhe faz mais impressão é “ver as pessoas sempre a olhar para o ecrã” e esquecerem-se do mundo que as rodeia. Ou as pessoas que vão nos transportes a falar e a partilhar “verdadeiros romances” com os restantes passageiros. Por vezes esquece-se do telemóvel, involuntariamente, e isso é outro problema da tecnologia. A família fica em pânico: “querem todos entrar em contacto e a certa altura acham que já aconteceu algo”.

*Texto editado por Marta F. Reis