O cheiro a peixe fresco torna-se cada vez mais intenso à medida que nos aproximamos do pavilhão. Ao primeiro vislumbre, há dezenas de trabalhadores a descarregarem caixas e caixas de peixe. Ao mesmo tempo, máquinas empilhadoras circulam desenfreadamente pelo pavilhão. Trabalha-se em contrarrelógio para que à uma hora da manhã tudo esteja pronto para se começar a vender. Estamos no pavilhão do pescado do Mercado de Abastecimento da Região de Lisboa (MARL), em Loures. Num único pavilhão encontram-se dezenas de bancas definidas por linhas brancas no chão e com espaços para entrada de mercadorias, alinhadas paralelamente. Vendem o peixe mais fresco que se consegue e disputam entre si a clientela que todas as madrugadas chega ao mercado. Mas o peixe, dizem, está cada vez mais escasso e caro.
À chegada das carrinhas com peixe, os trabalhadores apressam-se para as descarregar. Por dia, cada banca, com cinco a 10 trabalhadores, chega a descarregar entre cinco a seis toneladas de pescado. Entre a água e o gelo que caem das caixas, os trabalhadores, com galochas, repetem consecutivamente os mesmos gestos entre conversas e piadas sobre futebol. No pequeno escritório de cada banca veem-se cachecóis e posters do Benfica.
Todos se conhecem e trabalham lado a lado há anos. Um desses trabalhadores é Jardel Alcoleze, brasileiro de 37 anos e há mais de 20 no setor. Antes de começar a trabalhar no MARL vendia peixe nas praças de bairro. “Trabalho aqui de noite e de dia tenho três peixarias”, conta. Não é caso único. Outros trabalhadores também têm familiares com pequenas peixarias num setor que dizem estar sob enormes pressões. “Está em crise e isto não tem duração”, desabafa Américo Reis, de 44 anos e há 24 no setor, depois de ter descarregado o peixe que tem para vender.
“O peixe fresco está cada vez mais carro. Não há grandes quantidades de peixes e o nosso abastecimento é principalmente estrangeiro”, explica Manuel Simões, que tem 38 anos de profissão sobre as costas. Hoje, o peixe que todos os dias nos chega à mesa provém principalmente de Marrocos, Mauritânia, Senegal e Espanha, enquanto o pescado em águas portuguesas é cada vez menor, conta. “O peixe português tem qualidade, mas o preço é inflacionado por ser mais raro explica”.
Com a falta de peixe, o setor tem, nos últimos anos, apostado na aquacultura, sendo que, hoje, a maioria do peixe vendido no MARL provém daí. “Se não fosse o peixe de viveiro e os de Espanha não teríamos hoje nada para vender”, diz mesmo Américo Reis. “Há pessoas que lá fora são bem enganadas por essa situação [pensarem ser peixe de mar quando é de viveiro]”, complementa.
Ao invés, Luís Carlos, de 43 anos, prefere o peixe de aquacultura, não hesitando em afirmar que quem diz que o peixe de aquacultura não presta está redondamente enganado. “O peixe à partida tem um certificado de segurança e qualidade por todo o seu crescimento e alimentação serem controlados. É do mais saudável que se pode comer, enquanto é impossível rastrear o percurso do peixe do mar”, explica.
A falta de peixe nas águas territoriais portuguesas não é a única razão para a crise que o setor está a passar, pelo menos para quem diariamente mete as mãos no gelo. A concorrência das grandes superfícies e a mudança dos hábitos alimentares de quem vive e trabalha em Portugal são outros motivos apontados por quem conhece por dentro o mercado do peixe.
“As grandes superfícies rebentaram com isto tudo”, diz José Manuel Duarte, de 52 anos e há 31 no ramo, acrescentando que, para poder ser competitivo, teria de fazer os seus preços, algo impossível financeiramente. “Recebem e fazem os preços diretos e não conseguimos combatê-los”, refere Américo Reis.
Uma situação que advém, explica Manuel Duarte, de uma grande concentração do setor em grandes empresas, fazendo com que “os grandes possam fazer tudo e os pequenos nada”.
“Lá fora”, expressão que repetem talvez pelas longas horas que passam no MARL, os trabalhadores até percebem o porquê das pessoas comprarem peixe nos supermercados. Para Alcoleze, é normal por as “ganharem o salário mínimo e procurarem o que é mais barato”. Também Henrique Nobre chama a atenção para os baixos salários, que impedem as pessoas de “chegarem a certas qualidades de peixe. Ficam-se pelas mais baratas, como a dourada, o robalo e a pescada”.
A situação parece não se limitar apenas aos clientes finais. Com alguma desilusão na voz, Luís Carlos, de 43 anos, confessa saber de casos em que colegas seus que foram abastecer-se às grandes superfícies para depois venderem no MARL. “Há quem trabalhe aqui e vá abastecer às grandes superfícies para depois vir para aqui vender. Há colegas nossos que vão comprar salmão e que trazem uma carrinha cheia”.
Nem sempre foi assim. Tempos houve em que carrinhas e carrinhas chegavam sem parar ao mercado, fazendo longas filas enquanto os condutores esperavam para descarregar a preciosa carga. Essa imagem ainda hoje está fresca na cabeça de muitos trabalhadores que, nos dias que correm, esperam por melhores tempos. “Antigamente, se não fossem mais de dez carros por dia não era nada”, conta Américo Reis com alguma nostalgia. Tempos em que a venda do peixe ainda era feita na Docapesca e não no MARL.
“Os primeiros dois anos [no MARL] foram muito bons, mas depois o cliente deixou de voltar. O mercado em si ruiu”, desabafa Manuel Duarte.
Para tal, diz, contribuiu a localização do MARL a meia hora de Lisboa de carro e os custos associados ao transporte das mercadorias, bem como a horário de venda. Mas a ideia de que estão pior ali não é consensual. Henrique Nobre, de 45 anos, garante que as condições da Docapesca eram piores. Por exemplo tinham de descarregar os carros à chuva, o que ali não acontece.
Depois de duas horas de fiscalização da qualidade do peixe e descarregamento das carrinhas, as portas do MARL finalmente abrem à uma hora em ponto.
Nas bancas, o peixe está disposto de forma organizada como numa montra. Não falta variedade. Peixe pequeno, peixe grande, peixe caro e peixe barato. Mais um dia como qualquer outro no pavilhão, resumem os trabalhadores.
Aos poucos, os clientes avançam pelo mercado. Começam as negociações sobre o preço e as quantidades do peixe. Alguns operadores têm preços definidos e é pegar ou largar, mas outros entram em negociações, embora calmas, com os clientes. O comprador oferece um preço, o vendedor outro e chega-se a um consenso. Dizem que é o mercado a funcionar.
Alguns clientes vêm comprar o peixe para os seus restaurantes, outros para as suas peixarias e mercados de bairro e outros quantos para consumo próprio. No MARL qualquer pessoa pode comprar peixe ou qualquer outro produto, algo mal visto por alguns trabalhadores. É o caso de Américo Reis que afirma que, desta forma, o MARL concorre diretamente com “o pequeno mercado que há lá fora”, defendendo que os restaurantes “não deveriam vir cá comprar”, mas sim às poucas peixarias de bairro que ainda conseguem sobreviver.
Por volta das 2 horas da manhã já o pavilhão já há de novo mais trabalhadores do que por clientes. É madrugada de quarta-feira, um dos dias mais fracos para o mercado, explicam-nos. Os melhores, esses, são à segunda e sexta-feira, quando os clientes procuram reabastecer-se depois e antes do fim de semana.
Com a época da sardinha e arraiais que encherão as ruas do país, o mercado poderá ganhar um nova vida, mas apenas temporariamente. “A venda da sardinha ainda está no início, mas em princípio comer-se-á muito”, explica Manuel Simões, ainda que haja sempre o condicionamento da pesca ter limitações. A época da sardinha começou no final de maio, mas só agora começa a chegar à mesa. “A sardinha é a rainha”.
Os trabalhadores Não é fácil trabalhar-se no setor do peixe, confessam vários trabalhadores. Não é pelos baixos salários ou pela precariedade que caracteriza outros setores da economia portuguesa, mas pelos horários e, por vezes, pela carga de trabalho. Num período de duas horas não há mãos a medir, mas depois tudo acalma um pouco.
“Não é um emprego muito fácil por ser em horário noturno e teres de alterar toda a tua vida”, conta Luís Carlos. Com alguma tristeza, Carlos confessa que está casado há 17 anos, mas que por causa do seu trabalho nunca conseguiu levar a sua filha, hoje com 16 anos, à escola de manhã. “Quando saio daqui, já a minha mulher a levou”, confessa. Entra no trabalho entre as 20 e as 21 horas e sai por volta das 9 horas da manhã. Depois de descarregar e vender o peixe, ainda fica a tratar da contabilidade no escritório da empresa, localizado também no MARL.
Por ser um trabalho duro nem todos os trabalhadores o conseguem aguentar. Alguns esperam por uma nova oportunidade de emprego em regime diurno para abandonarem o setor, conta Luís Carlos, mas por vezes essas oportunidades tardam. Entretanto, algumas empresas vão fechando, despedindo trabalhadores, explica Américo Reis, apontando para os espaços de bancas outrora ocupadas e hoje vazias ao fundo do pavilhão.
Numa noite de trabalho normal, ouvem-se também algumas queixas sobre a administração do mercado. “Para o que pagamos aqui no condomínio não temos as condições necessárias”, diz Manuel Duarte, acrescentando que se “queremos mudar uma lâmpada temos de pagar do nosso bolso”. Por cada quadrado de banca os operadores pagam entre 700 a 800 euros e 1600 euros por cada ‘box’.
A insegurança é outro sentimento também relativamente comum. “Antigamente o MARL pagava à GNR para estar aqui, mas depois acabou”, lamenta Manuel Duarte. Também Rui Guedes, de 37 anos e cuja empresa foi assaltada, considera que existe falta de segurança por as câmaras de vigilância não funcionarem e a GNR não estar presente em patrulha.