Comboios, Estações e Apeadeiros (*)

Nas estações, o ‘maquinista’ reconhece antigos passageiros, à janela de comboios vazios: são os que passaram a vida a mudar de comboio 

O comboio iniciou a viagem com poucas carruagens e a marcha parecia lentíssima. A passagem dos anos, porém, fez acelerar a velocidade, até dar lugar a uma vertigem que nem permite ler o nome das estações. O comboio da Vida acelera sempre e a ideia de que caminha para a última estação faz diminuir o prazer da viagem.  

A partida deu-se logo a seguir à Segunda Guerra, e o ‘maquinista’ ainda recorda que os sinos tocavam a finados quando os primeiros passageiros tomavam os seus lugares: «Morreu o Carmona», dizia-se nas carruagens, e a notícia vinha em letras gordas nas primeiras páginas dos jornais. O apeadeiro era, então, uma aldeia cheia de idosos que ansiavam por quem lhes lesse as notícias: «’Coreia do Norte invade o Sul, e os Estados Unidos tomam posições para defender os sul-coreanos’, querem que leia?». «Não, isso não interessa…». «’Marido mata mulher à facada’». «Lê essa, lê essa…!». E, assim, o pequeno ‘maquinista’ treinou a leitura em voz alta e aprendeu a participar nas conversas de adultos, que lhe passaram saberes para a vida.

Cedo, os mais velhos começaram a deixar as carruagens, substituídos por jovens que variavam com a sucessão das linhas: trabalho, estudos, serviço militar, casamento, filhos… Até que aconteceu a revolução, e a cadência das entradas e saídas de passageiros aumentou ao ritmo de mudanças súbitas e imprevistas. Algumas até assustadoras! Então, as composições iam apinhadas, e eram muitos os que disputavam uma nesga na cabina do ‘maquinista’. Gente a mais, que foi saindo quando percebeu que estava no comboio errado. 

Tempos de muitas surpresas: às vezes, o comboio parecia estar em perigo, à beira de um precipício, mas logo a linha desembocava numa calma planície; outras, parecia seguir em segurança, mas, inopinadamente, surgiam pedregulhos que quase o faziam descarrilar, provocando a saída dos mais assustados. Anos de viagem deram ao ‘maquinista’ a ideia de que conhecia bem os passageiros que se mantinham, e qual o lugar certo para cada um. Pura ilusão! Nunca se sabe tudo sobre quem nos acompanha.   

Com metade da viagem já passada, comboios mais modernos atraiam os que apreciam a novidade, e foram muitos os que saíram sem dizer adeus. Os companheiros de agora voltam a ser idosos de 70 anos, que se queixam de dores nas ‘cruzes’ e adoram uma boa prosa, mas estes não dispensam saber o que se passa na Coreia…

Nas estações, o ‘maquinista’ reconhece antigos passageiros, à janela de comboios vazios, parecendo implorar a entrada de um companheiro, igualmente solitário. São os que passaram a vida a mudar de comboio, até serem, eles próprios, descartados. 

Com o núcleo de passageiros estabilizado, a viagem prossegue, já em piloto automático e com uma velocidade que não permite saborear a paisagem, mas a cumplicidade dos resistentes faz com que a companhia seja mais apreciada. Olho os lugares vagos sem um pingo de tristeza. Quem sabe, não virá a sentar-se em algum deles o melhor dos companheiros?  

* Título de uma série de quadros do pintor Manuel Amado