NOS Primavera Sound, dia 3: A noite do dilúvio emocional

Nick Cave clamou “push the sky away” e a resposta foi uma catarse coletiva. O concerto da unanimidade no festival de todas as estações. 

Dias antes, os oráculos meteorológicos indicavam sábado como o único dia previsível de primavera. Pura ilusão: impermeáveis, chapéus de chuva e botas oficializaram um inverno fora de época, não completamente estrangeiro no Porto mas ainda assim estranho, adverso e indesejado.

Pagaram o preço aqueles que estavam antes de Nick Cave na fila para entrar em palco. Por exemplo, Kelela e o seu r&b sofisticado, herdeiro da sedução de Aaliyah embora movido por formas não-lineares, os Public Service Broadcasting e a banda sonora para vozes do arquivo (e trechos de filmes em cada canção), e o híbrido de pop com house a que Joe Goddard deu corpo sem os Hot Chip.

Onde se meteu toda a gente? Na praça coberta da restauração, na zona abrigada em frente ao palco SEAT, em bares ou outros espaços cobertos que, por muito minúsculos que fossem, abrigavam dos pingos. 

Por volta das 21h30, a resistência terminou. Em poucos minutos, o vale do Parque da Cidade ficou coberto até perder de vista.

E o que se perdeu em conforto possível face às condições atmosféricas, foi substituído por catarse. Num festival que primou pela diversidade – aposta ganha da organização desde o ano passado – e atualidade, Nick Cave foi a excepção sobre a regra.

E, sem surpresa, gerou o caso de maior consenso sobre os debates (estéreis) das gravações instrumentais usadas por rappers e outros criadores. Cave tomou conta das operações e a dispersão deu lugar à devoção.

Devotos, admiradores, fãs antigos, repetentes do Primavera 2013 – onde já fora rei – ou simples curiosos (este Primavera cresceu, abriu-se e já não é exclusivo um melómano como nos anos inaugurais), puderam testemunhar em êxtase uma procissão de memórias, confissões, pecados e redenções.

Que Cave é um animal de palco já o sabíamos. Que a morte do filho Arthur, de 15 anos, em Agosto de 2015, é um menir que passou a carregar às costas também. 

E há violência, dor, choque e eletricidade por todo o concerto. Mas também amor, travagem e apaziguamento como quando recua à lindíssima "Into My Arms". 

Os monumentais "Push The Sky Away" (2013) e "Skeleton Tree" (2016), dois dos mais inspirados da sua obra, são o rastilho para revolver clássicos como "Red Right Hand", "Tupelo", "Do You Love Me", "Weeping Song" e "Stagger Lee".

Ninguém foi amado como ele neste festival mas, para chegar ao topo da montanha, foi necessário rastejar na lama. No final, o céu estava lá. 

E ainda houve tempo para Nils Frahm conciliar minimalismo e eletrónica de forma soberba, musical e visualmente, sobre um autêntico estúdio exportado para o Porto. Já os War On Drugs perderam a batalha com a madrugada e foram demasiado Oceano Pacífico para a euforia necessária após o ato litúrgico anterior.

"Lost In The Dream" e "A Deeper Understanding" estão pejados de canções inspiradas pela miséria e o falhanço. Para um grande final, não sairam da sombra de Bruce Springsteen e das variações de "Dancing In The Dark". Boss mas pouco.