A crise europeia que os três últimos anos de grandes deslocações cozinharam sobretudo a lume brando – salvo ocasionais detonações incendiárias – revela-se, para embaraço comunitário, na semideriva da embarcação Aquarius. O navio segue a caminho de Valencia a convite do governo espanhol, acompanhada desde terça por barcos da Guarda Costeira italiana, que entregaram esta quarta-feira laranjas e barras de cereais para alimentar os passageiros até à atracagem de sábado. A disputa que a embarcação gerou, no entanto, não chegará em breve a bom porto. É um microcosmos de algumas das desavenças mais profundas na União Europeia e coincide com o debate no fim do mês no Conselho Europeu sobre as leis de asilo comunitárias. A divisão parece insanável e os seus estilhaços faziam-se sentir desde Roma a Berlim. Em Bruxelas, num momento de candura, o vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, reconhecia que a Europa se encontra “no limite” da desintegração.
Matteo Salvini – a voz mais sonante e, porventura, também, a mais poderosa do novo governo italiano – exigiu esta quarta um pedido de desculpas a Emmanuel Macron por este ter acusado a Itália de se comportar com “cinismo e irresponsabilidade” na aproximação do Aquarius, que no fim de semana resgatou 629 pessoas ao largo da costa da Líbia e se viu impedida pelo governo italiano de as depositar na segurança da terra firme. Salvini, que é ministro do Interior, mas, na realidade, decide a meias o rumo do governo, afirmou esta quarta no Senado que o presidente francês apenas finge a solidariedade que demonstrou com os possíveis imigrantes e requerentes de asilo no Aquarius – ofereceu a Córsega como possível destino. Repetindo a acusação de que as migrações na Europa são o produto de redes criminosas que a comunidade não deve auxiliar, Salvini acusou o presidente francês de ter recusado entre janeiro e maio a entrada a cerca de dez mil pessoas que tentaram cruzar a fronteira terrestre entre os dois países. Salvini afirmou que Roma não precisa de “lições de generosidade e solidariedade de ninguém” e colocou o dedo numa das mais abertas e sangrentas feridas da União: o descalabro do sistema de distribuição de refugiados.
Neste ponto, Salvini pode atacar com liberdade Macron e praticamente todos os líderes europeus, a milhas de cumprir os objetivos desenhados por Jean-Claude Juncker para aliviar a pressão na Grécia e Itália. A França acolheu apenas 640 dos 9816 requerentes de asilo com que se comprometeu no pico das migrações de 2015 e 2016, enquanto a Itália tem em mãos centenas de milhares de aspirantes a asilo. O governo italiano insistiu esta quarta-feira em dizer que é ele – e não Bruxelas – quem desenha a sua política de asilo, convocou o embaixador francês a prestar declarações, cancelou um encontro entre ministros das Finanças e ameaçou desconvocar também o encontro entre o novo primeiro-ministro e Macron. Num gesto surpreendente, Roma aceitou esta quarta a chegada de cerca de 900 migrantes à Sicília. O presidente francês respondeu dizendo que “não nos devemos entregar a emoções que certas figuras estão a manipular”.
A disputa entre a França e Itália não era esta quarta o único sintoma da fratura europeia em torno da crise dos migrantes e refugiados. O ministro alemão do Interior organizou uma reveladora cimeira em Berlim com o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, que governa em coligação com a extrema-direita e está prestes a assumir a presidência rotativa da União Europeia. Aliado espinhoso da chanceler Angela Merkel, Horst Seehofer disse-se disposto a formar uma aliança de três países – Alemanha, Áustria e Itália – dedicados a reformar o sistema de asilo europeu e frenar a chegada de novas pessoas. Está fraturada não apenas a comunidade europeia, mas também a coluna humanitária erguida que Merkel ergueu no pico da crise.