Há sempre, em redor dos guarda-redes uma espécie de fascínio, como se perguntássemos para nós próprios o que leva alguém a querer ficar ali, debaixo da trave e entre os postes, na solidão da grande área. Claro que a solidão da grande área é apenas um artifício estilístico, quantas vezes a grande área não está pejada de gente como uma taberna de Alfama ou como a Festa doPau, em Assequins, com o pobre do guarda-redes aos papéis, doido por um segundo de repouso, com vontade de chutar todos dali para fora à mistura com a bola. Mas solidão é palavra que vai bem com guarda-redes. E angústia também.
Stefano Benni, jornalista e escritor italiano, tem um poema precisamente chamado La Solitudine del Portiere di Calcio: «Solo quando c’è il rigore/vi ricordate di me/del vostro portiere/ditemi perché». E eu pelo caminho desta crónica lembrei-me de Sam Bartram, guarda-redes do Charlton Athletic, clube do sudeste de Londres, e daquilo que lhe aconteceu no dia de Natal de 1937.
Caíra sobre a Mancha um daqueles nevoeiros de deixar o Continente isolado e, em Stanford Bridge, casa do Chelsea, os espetadores esforçavam os olhos para o terreno e viam tudo branco. Bartram escreveu nas suas memórias – Sam Bartram By Himself – que não via nada à sua frente a mais de dois metros de distância. Vislumbrava vultos, de quando em vez. A sua equipa atacava e os companheiros desapareciam na neblina como Sebastiões britânicos com ganas de Desejados. Depois de ter sofrido um golo, as coisas foram piorando, como se isso fosse possível. O árbitro chegou a interromper o jogo mas, logo em seguida, retomou-o.
Bartram sentiu-se sozinho mas feliz. «Estamos a atacar como nunca! Há que tempos que não vejo um dos nossos defesas», comentou para com os seus botões chegando-se o mais possível até à entrada da grande área e pondo uma mão em pala sobre os olhos na tentativa vã de ver através daquela parede fantasmagórica. Depois pôs-se à escuta: «Estava ansioso para ouvir o barulho que me indicasse que tínhamos marcado um golo. Mas o silêncio era estranho».
Armando Nogueira, o enorme cronista brasileiro que queria voltar ao mundo, noutra encarnação, transvestido de urubu – «não para viver comendo porcaria nem andar de luto fechado mas para poder voar – e bem» – tinha uma coluna no Jornal do Commercio chamada Grande Área e escrevia: «Minha tribuna é a solidão». Também tinha um fascínio por guarda-redes: «O goleiro sempre foi o filho enjeitado do futebol. Diz um velho ditado inglês que ‘um time se compõe de 10 jogadores e um goleiro’. A discriminação está na cara. O atacante que perde um gol feito e faz outro, logo depois, sai no lucro com a torcida. O goleiro que toma um gol aparentemente defensável será execrado se o jogo terminar um a zero».
Por seu lado, outro brasileiro, Lourenço Diaféria afirmava convicto: «O goleiro, normalmente, é o escalado pra ir buscar a bola toda vez que ela é chutada longe ou quando cai no córrego».
Não há de mais solitário do que um homem que é obrigado a ir buscar a bola: fora ou dentro da sua baliza.
Talvez a solidão do guarda-redes seja como a sua angústia. É ele que a sente e que a materializa. Transforma-se a si próprio numa figura digna de dó na altura em que sofre um golo e só é herói na defesa mais enlouquecida. De Sam Bartram dizia-se na imprensa inglesa: «Consegue fazer uma defesa fácil parecer boa, uma boa defesa parecer ótima e uma ótima defesa parecer um milagre».
Era um rapaz tão apreciado que acabaria por ter uma estátua à porta do The Valley, o estádio do Charlton. Exibe um sorriso misterioso de quem sabe algo que todos nós desconhecemos e esse algo será certamente do tamanho da sua solidão. Começara por tentar a sorte como médio-centro mas não havia treinador que o pusesse a jogar. Um dia ofereceu-se para ir à baliza. Ficou lá durante vinte e dois anos consecutivos.
Voltemos ao dia de Natal de 1937. Bartram sente-se só mas curioso. Havia um silêncio estranho e uma ausência de movimento pouco natural.
Depois surgiu uma figura. Um homem caminhava na sua direção, primeiro mal definido, depois com contornos mais nítidos até que se materializou por completo na sua frente.
Era um polícia.
É Bartram que conta: «’What on earth are you doing here?’ he gasped. ‘The game was stopped a quarter of an hour ago. The field’s completely empty’. And when I groped my way to the dressing-room, the rest of the Charlton team, already out of the bath and in their civvies, were convulsed with laughter».
Até no riso dos companheiros ficou sozinho.