Gravar e promover um novo álbum já é uma rotina ou cada ciclo gera um novo entusiasmo?
Sim, ainda mexe muito comigo. Cada álbum é uma etapa de vida. Não acredito que quem cante, não sinta. Pelo menos, comigo não é possível. Cada álbum marca uma época da vida. Este por ser verdadeira, por ter crescido como intérprete e pessoa.
Que fase da vida é esta em que se apresenta com um auto-retrato?
Sou eu na minha essência! Na minha forma de cantar, de ver o mundo, a vida e a música. Todos os álbuns acabam por falar de amor e o incrível disto tudo é perceber que o amor está presente em tudo, seja nas desilusões ou nos momentos maravilhosos. Há muitas formas de amar. O amor que se tem pelos filhos não é igual ao amor pelo parceiro ou pela família ou amigos – a amizade também é uma forma de amor. Este disco é muito marcado por esses temas e é também um reviver de canções que já ouvia na taberna dos meus pais e que ouço quando vou às tasquinhas ouvir fado. Fazem parte de um percurso desde miúda e que tinha vontade de cantar à minha maneira. Senão não seria eu.
O desamor também é parte do amor.
Claro que sim, e o ódio também. Precisamos de aprender a desamar para voltar a amar outra vez. Senão não tinha piada nenhuma. Há pessoas que saem da nossa vida, outras estão permanentemente e aprendemos a gostar delas, e há aquelas de quem não gostamos da primeira impressão e nos surpreendem. É uma aprendizagem e utilizo a música para expressar todos esses sentimentos.
Como é que se concilia o amor com uma agenda tão preenchida?
É difíiiiiiiicil. Tenho lá um namorado pequenino em casa que anda triste comigo. Disse-lhe que vinha conversar com os jornalistas e o meu filho respondeu: «Também sei conversar com os jornalistas». Não é fácil, a vida pessoal muitas vezes fica para segundo plano, mas as pessoas que nos amam têm que saber conciliar. E eu também tenho que saber tirar proveito do pouco tempo livre.
Nos últimos anos, a vida pessoal da Mariza foi bastante exposta.
Infelizmente sim, porque as pessoas são muito curiosas. Tento ao máximo preservar a minha vida pessoal, que é igual à de tantas outras pessoas a quem acontece o mesmo, só que sem mediatismo – e eu entro muitas vezes na casa das pessoas sem pedir licença. A curiosidade incomoda-me bastante mas tenho de saber lidar com isso.
Por exemplo, o parto prematuro do seu filho?
Por exemplo. É curioso porque naquela maternidade havia inúmeras mães na mesma condição, só que não apareceram na televisão. Gerou-se um circo mediático. Obviamente, servi de exemplo para outras mães e ainda me enviam imensas mensagens. Ajudo e contacto com outras mães. É uma situação que acontece muito no mundo de hoje. O Martim é um miúdo feliz, um ganda malaico, gosta de fado, gosta de guitarra portuguesa, agora anda apaixonado por história de Portugal porque anda a ver uma novela do Moita Flores com a avó.
Tal como as pessoas, há canções que ficam para sempre?
Sim, há. Ainda agora, e já com a digressão na estrada e as canções novas para apresentar, dá-me vontade de cantar temas antigos. E, quando os canto, parece que é a primeira vez. Geram-se emoções diferentes e o incrível deste tipo de música de raiz é a forma como se encontram sensações novas cada vez que se canta. Posso dar um concerto hoje e outro amanhã a cantar as mesmas coisas e a passar por experiências completamente diferentes. Às vezes, fico a pensar: «uau, não sabia que conseguia sentir isto dentro desta música». E há dias em que canto e abro uma ferida. Ela está aí latente o tempo todo. Às vezes é doloroso, outras vezes prazeroso. O fado tem muito isso. Por isso, digo que este é um fado muito pessoal com um cunho muito meu. Daí o disco chamar-se Mariza.
A geração da Mariza é a do ‘novo fado’, mas entretanto passaram perto de vinte anos. A evolução do novo fado é em direção a um fado pessoal e singular?
Sim. O fado é uma música urbana de Lisboa que respira a cidade e as pessoas. Se a cidade se move e se modifica, a música acompanha esse andamento. O fado que se ouvia no século XIX nada tem a ver com o atual. Hoje há muito mais fados musicados. Vêm pessoas de outros quadrantes para cantar e tocar fado; tocar guitarra portuguesa ou estudar. Parecendo que não, isso traz uma outra envolvência. Cada vez se vê gente mais nova a interessar-se por fado, a cantar ou sentir. A internacionalização do fado é incrível porque, da experiência que tenho, sinto que mesmo não falando a mesma língua existe uma comunicação feita através das emoções.
Essa comunicação foi facilitada à medida que fadistas como a Mariza ‘ensinaram’ o fado a quem não compreendia uma palavra?
Quando estou em palco, existe uma fórmula de dar. As primeiras quatro canções servem de habituação ao público, ao local e às emoções, mas depois começo a respirar e apresento ao público algo que não conhece. Algo que faz parte da minha raiz e do meu povo. Naquele momento, sou a representação e começo a explicar, antes de cantar cada fado, de onde vem, a sua essência e as palavras: o amor, a saudade e o que significa o próprio fado. Quando existe essa explicação, o entendimento é maior. Mesmo em Portugal, onde não há a barreira da língua – e costumo dizer que a música não tem barreiras –, cada pessoa pode ter a sua interpretação, por exemplo, do Ó Gente da Minha Terra pela sua vivência. Há formas completamente diferentes de sentir aquele poema a partir da experiência de vida de cada um. Porque há pessoas que trabalharam fora e regressaram a Portugal, ou porque se tem familiares fora, ou porque se sente o país de forma intensa; cada pessoa tem uma história que a faz sentir a música à sua maneira.
Sentiu a responsabilidade de ser porta-voz do fado?
[A responsabilidade] vai sempre existir. Desde que tomei essa consciência que percebi que tinha uma grande responsabilidade. Carrego a cultura de um povo, a canção de um país e a língua. Agora, eu tenho um problema. Sou um bocadinho perfeccionista e tento fazer cada vez melhor.
Onde é que o fado já chegou?
O fado está mano a mano com outras músicas incríveis. Às vezes, estou em festivais com artistas que admiro como a Diana Crawl, a Pink ou oSting. É incrível perceber onde já chegou. A exigência e a maturidade. Consegue estar nos mais maiores festivais do mundo, nas maiores salas e com as maiores programações.
Lisboa é uma cidade em mutação. O fado também?
Completamente. É doloroso para os puristas, mas para isso existe o reconhecimento da UNESCO [Fado Património Imaterial da Humanidade]. Para preservar o fado tradicional. Reconhecendo o que é tradição, é possível dar o passo em frente em direção à mutação. É como a história: se soubermos quem somos, conseguimos andar orgulhosamente em frente com a certeza do que estamos a fazer. Se não nos conhecermos, podemos dar esse passo mas é a medo. Com o fado passa-se o mesmo. Por isso, o fado tradicional está protegido. Há um Museu do Fado onde as pessoas podem visitar, aprender e estudar. Como funciona a métrica do fado tradicional, como se conta [uma história], como se toca e constrói uma guitarra portuguesa. Essas bases existem.
Estando a identidade preservada, como vê a democratização do fado?
É verdade, até estrangeiros! Muitos aprendem por fonética. Já me aconteceu em países como a Sérvia, a Polónia e o Japão – e atenção que é um país gigante mas o núcleo [de seguidores] é pequeno – conhecer pessoas que tentam aprender as nossas tradições e fazer parte delas. É motivo de orgulho.
A relação do exterior com o fado também se alterou?
Sim, porque o fado deixou de ser a jóia mais bonita da casa para passar a ser uma jóia exposta que as pessoas têm oportunidade de ouvir esta música que é tão especial. Há muitas músicas do mundo, conheço várias e sinto-me grata por isso mas a música na qual penso que se consegue exprimir melhor os sentimentos é o fado.
O que o torna diferente de outras músicas identitárias e emocionais?
[O fado] é muito visceral. Tem que ser feito com alma. Se não for assim, não tem verdade. O fado canta os sentimentos da vida e muitas vezes é irracional. Há uma frase de um fado do Fernando Maurício de que gosto muito e até gravei que diz: «sinto-me só/sabe-me a boca a fado». Isto é muito emotivo. É uma coisa dorida. E o fado tem uma coisa maravilhosa: quando a gente canta, a alma é limpa. E estamos preparados para voltar a cantar outras feridas. Essa é a magia.
O fado é possível sem dor?
Sim, há fados alegres. Há o Lisboa Menina e Moça. Mas são fados musicados. Os fados tradicionais são baseados no sentimento. Mais pesados e dolorosos.
Como é que se relaciona com o passado musical?
É interessante porque ouço o primeiro disco e digo: «Caramba, a voz era tão miúda». Tinha 26 anos, faltava-me o peso de tantos palcos. Mas depois penso: «Se calhar se cantasse isto agora, seria de outra maneira mas a essência seria a mesma».
E a inocência?
(ri-se) Mudou. Já não sou tão inocente assim. Às vezes, quando tenho oportunidade de ir ver concertos com amigos dizem-me: «xi, esta música!». Eu já perdi a inocência. Já estou a ver se as luzes batem certo com a música, se os músicos estão no tempo certo, se a cantora ou o cantor estão afinados. Já estou sempre a tentar perceber o que está por trás.
Está sempre a tentar aprender?
Sempre (ri-se). É impossível. Porque é que não consigo chegar a uma taberna e ser como uma pessoa comum que pede um copo de vinho e se senta? Não, estou sempre a estudar a toda a hora.
Nunca foi uma purista.
Não (sorri). O meu pai é cem por cento fado. Só ouve vozes masculinas. Acho que a única voz feminina que ele começou a ouvir foi a da filha. Agora, já ouve mais mas do que gosta mesmo é de fado cantado por homens. Do outro lado, a minha mãe é moçambicana e sempre me mostrou outras músicas. Foi ela que me mostrou MPB (Música Popular Brasileira). Foi com ela que ouvi pela primeira vez Frank Sinatra, Nina Simone…e isso também se aplica à literatura. Mostrava-me escritores africanos. Na minha cabeça, nasceu um mundos sem fronteiras em que tudo é possível desde que seja bem feito e com responsabilidade. Quando me falam em música, tenho um mundo muito diferente. Ainda há pouco tempo me aconteceu estar a ouvir o Pablo Alborán e, de repente, por cima daquela música começar a cantar outra. Estou sempre a magicar. Às vezes, acordo a meio da noite a magicar concertos e penso: «tenho de parar de fazer isto». Por isso, é que aparece pela primeira vez uma canção escrita por mim [Oração, em que canta «Triste e só anda meu coração /Como anda a folha perdida no vento/ /Procuro caminho nesta escuridão»]. Escrevo muito à noite. Ando sempre com um bloquinho. Como gosto muito de poesia, de vez em quando saem poemas. Só que nunca senti que fosse algo que pudesse ser mostrado. Aconteceu por engano. Foi parar ao Tiago Machado [músico da banda de Mariza e arranjador]e ele musicou o que não era suposto. Nunca tive essa intenção. Foi um acaso que por mais que eu dissesse que não, entrou. [Oração] aparece como uma canção de embalar. Já nem digo mais nada porque quando a canto em palco, é um pouco mais dolorosa. Enquanto nas outras, uso as palavras de outras pessoas para me exprimir, aqui são as minhas.
Em maio, partilhou o palco com a Ana Moura no espetáculo da final da Eurovisão em Lisboa. Um acontecimento inédito. Que significado tem?
Para já, mostrar Portugal no seu melhor. E mostrar que são duas artistas que podem cantar juntas sem problema algum. De fora, acha-se que é um mundo vil mas só não nos damos mais porque as agendas nem sempre são possíveis de conciliar.
Existe uma imagem de rivalidade no meio do fado.
Penso que existe em todos os meios. Da minha parte, não tenho qualquer rivalidade com ninguém. Faço o meu caminho, estou atenta obviamente, gosto da Raquel Tavares, da Carminho que é uma fadista com um talento enorme, da Ana Moura, do Camané, do Ricardo Ribeiro…são tantas vozes. Unidos somos mais fortes. Não me lembro de ouvir falar em rivalidades. Talvez entre bairros.
Passou uma infância feliz?
Sim, recordo-me de brincar nas ruas da Mouraria a ouvir fado da casa das vizinhas. Dos discos que elas punham quando estavam a limpar a casa. De cantar na rua e de ouvir cantar. De fugir de casa e ouvir fado no bairro. De ficar fascinada a ouvir cantar oFernando Maurício ou o Artur Batalha quando surgiu na taberna dos meus pais. Era um mundo do qual queria fazer parte. Tudo isso me marcou muito. Na minha adolescência, estive sempre ligada à música. Houve uma altura em que me desliguei do fado. Ouvia mas não cantava porque não me sentia digna de o fazer – toda a gente dizia que era diferente e eu achava que era negativo. Tinha uns 15 anos. E liguei muito a músicos lusófonos de Angola, Cabo Verde, Moçambique e Guiné. Ensinaram-me um pouco da minha outra costela que conhecia mas não fazia parte de mim. Fui-me aproximando graças a músicos como Tito Paris, Bana, Filipe Mukenga, Ruy e André Mingas, Paulo Flores, Eduardo Paim…tantos com os quais lidei e foram tão importantes para crescer e quebrar tabus.
Além da questão familiar da taberna, como é que, após uma infância e adolescência felizes, se relaciona com uma música sofrida?
A vida não é fácil. Os meus pais vieram de África com uma mão à frente e outra atrás. Portugal teve o maior número de refugiados de que alguém se pode lembrar após o fim das colónias. Muitas famílias voltaram, muitos africanos vieram para Portugal à procura de uma vida melhor e, de alguma forma, foram marginalizados. Essas pessoas traziam uma bagagem cultural que podia enriquecer Portugal com mão-de-obra. Eram professores, matemáticos e advogados. Pessoas com uma vida normal. Os meus pais tiveram uma vida sofrida. Cresci a trabalhar desde os cinco anos na taberna, a lavar chávenas de café, a servir às mesas e isso faz crescer. Às vezes pensa-se que as crianças não percebem mas hoje olho para o meu filho e digo: «se tivesses tido metade da minha infância, que foi muito feliz mas muito realista também, se calhar hoje não pedias um brinquedo todos os dias». Com o pouco que tinha conseguia ser feliz. Em miúda não cantava nada pesado porque o meu pai nem sequer deixava, mas quando cresci essa memória de mágoas e tristezas estava lá. Lembro-me de ver a minha mãe a limpar escadas para poder comer. Quando gravei o Lavava no Rio, Lavava, fez-me recordar a minha mãe a lavar roupa para fora para podermos comer. Se pudesse, a minha mãe nunca tinha passado por isso. Faz parte do percurso.
Essa consciência ajudou-a a não se deslumbrar com o reconhecimento?
Vai ajudar-me a vida toda. Tenho os pés na terra. Levo uma vida que adoro e melhor que a de muita gente. Agradeço muito por isso, por respirar o que amo, mas com uma consciência muito grande de onde vim. E mostro-o ao meu filho. Levei-o a Moçambique para ver a bisavó, a avó e os tios. Para lhe dizer que também é dali. Também faz parte. Não é só o mundo maravilhoso que lhe posso dar – tento dar-lhe tudo o que posso, o que pode ser um erro – mas tentando mostrar que a vida é muito mais do que o pequeno mundo de benesses que ele tem.
Há pouco referiu que Lisboa é uma cidade em mutação. Essa transformação inclui o pacificar da relação com os PALOP?
Não creio que essa relação fosse difícil. Talvez porque África tenha estado sempre muito presente em casa, na educação, na gastronomia e na música. Nunca senti essa relação dorida e complexada. E desde os 18 anos que vou a África e sempre senti que, se Portugal é a minha casa, África é a minha raiz. Quando se é muito novo, não se percebe muito bem mas cada vez mais vou compreendendo que também pertenço ali. Adorava poder passar o final da minha vida com uma casinha na praia e uma havaiana no pé a comer camarões. Mas não é possível, porque a minha vida passa por aqui. Agora se existia esse lado incompreendido, não sei…
Por exemplo, na música afro-lisboeta.
Sempre existiu. Agora está é muito mais exposto. Quando tinha 15 anos, um primo meu – que mais tarde viria tocar comigo – levava-me às festas africanas. Era o primo mais velho e era com ele que saía. Na altura, ir a discotecas africanas era underground. Lembro-me de conhecer o Tito Paris no bar que ele tinha em Alcântara. Aos domingos, era lá que toda a gente se encontrava. O Rui Veloso, toda a gente ia lá parar, porque ali ouvia-se música. Já era a mistura da lusofonia e isto há muitos anos. Já vou fazer 45, por isso estou a falar de final dos anos 80, início dos anos 90. Essa Lisboa lusófona está é muito mais aberto porque existem muitos mais músicos e veículos de comunicação. As fronteiras diminuíram, enquanto nessa altura não havia nada. Não havia telemóveis para gravar. Só boca-a-boca.
No álbum, o Matias Damásio escreveu o single Quem me Dera. Procurou essa mistura?
Por acaso, não. Procurei as pessoas que respeito musicalmente e de quem sou fã. No caso do Matias, já conhecia a música mas não a ele. Quando me disseram que ele podia escrever para mim, estranhei porque pensava que ele não compunha. «Ok, vamos experimentar». E o que é mais incrível é a forma de escrever. Nós somos mais fechados, as rimas têm que ser certas. E ele tem uma forma tão livre de escrever. Sem nos darmos conta, aquilo faz parte do nosso mundo. A canção do Héber [Marques, vocalista dos HMB] traz uma frescura. Falamos de marchas mas também tem um pé na africanidade. É uma mistura tão fresca e subtil. E há o Verde Limão, um tema tradicional em que decidi imortalizar a minha mãe na língua da nossa terra: um dialeto chamado bitonga.