‘Na prisão só se deixa ajudar quem quer… E eu precisava de ajuda’

Uma prisão carregada de memórias e de histórias para contar de mulheres que cometeram crimes, que ultrapassaram limites, mas que só querem esquecer o passado que aqui as trouxe e lutar por um futuro melhor. É um «enorme desafio» liderar e respeitar todas estas mulheres, diz ao b,i. a diretora do estabelecimento prisional de Odemira.

A entrada no estabelecimento prisional de Odemira processa-se como em qualquer prisão – há que retirar todos os objetos dos bolsos, colocá-los num cacifo e trancar tudo à chave. Foi a primeira regra que os três guardas que nos receberam pediram para cumprir assim que chegámos a esta prisão com o objetivo de conhecer o dia-a-dia e as histórias de quem ali cumpre a pena que a Justiça lhe destinou. A elas, só a elas: a prisão de Odemira, aberta em 1995, é exclusivamente feminina. Ao todo, são 62 reclusas, cujas idades vão dos 22 aos 70 anos. O caminho de cada uma até passar para aquele lado de lá das grades é singular, mas todas têm um objetivo comum: querem uma vida melhor lá fora. As histórias são muitas, os desafios também, e quem as começa por contar ao b,i. é Paula Martins, diretora da prisão há praticamente oito anos. Antes disso, já tinha trabalhado como técnica em dois estabelecimentos prisionais, primeiro em Ponta Delgada, depois em Grândola. Sobre estes oito anos, Paula Martins não tem dúvidas de qual tem sido o seu maior desafio: «Respeitar e fazer respeitar». «Só gerir uma prisão já é um enorme desafio portanto, trata-se, no fundo, de gerir seres humanos. As questões humanas têm de ser muito respeitadas. O desafio está em respeitar e fazer respeitar todos os elementos que estão dentro desta cadeia, quer seja ao nível das reclusas, quer seja ao nível do pessoal que aqui trabalha», diz a diretora. «É importante impor o respeito, mas sabendo sempre respeitar», diz sentada na secretária, com uma resma de folhas à sua frente. E, garante, nunca sentiu que ser mulher fosse um entrave no desempenho destas funções. «Há na sociedade ainda muito esse estigma, mas temos de ter a responsabilidade de o afastar e não tenho sentido que, pelo facto de ser mulher, haja algum desrespeito. Muito pelo contrário!».

Aqui não se passa o tempo
 

Todas as reclusas trabalham e são pagas por cada atividade. Fazem trabalhos no bar, na lavandaria, e, fora da prisão de etiquetagem – que, tal como o nome indica, consiste mesmo em colocar etiquetas. 

Já há várias reclusas a trabalhar numa empresa local, depois de ter sido firmado um protocolo entre o estabelecimento e a Câmara Municipal de Odemira, que permite a algumas reclusas trabalhar onde for necessário, beneficiando assim do designado regime aberto no exterior (RAE). «Elas fazem a etiquetagem de pequenos frutos silvestres, como por exemplo mirtilos, framboesas, amoras…etc.. Agora estamos à espera de assinar com uma outra empresa, mas o âmbito de trabalho será o mesmo.»

As reclusas recebem uma compensação financeira que vai direta para fundos de uso pessoal, de apoio à reinserção social, de família e de obrigações. Dentro da prisão, apenas são autorizadas a mexer no fundo de uso pessoal para comprarem coisas essenciais, como bens alimentares e produtos de higiene. Paralelamente a estas atividades, frequentam a escola «todos os dias». «Temos uma parceria com o agrupamento de escolas de Odemira, onde são dados os cursos de aprendizagem e os cursos de educação e formação de adultos», explica ao b,i. a responsável. 
De volta à prisão, fazer os ponteiros do relógio passarem rápido é uma tarefa complicada – ou quase impossível – mas todas as reclusas são motivadas a agarrar de «braços abertos» o dinamismo que a cadeia lhes oferece. Para elas, pelo menos para algumas, esta é uma oportunidade para recuperar as suas vidas. E os cursos – pensados para que as reclusas possam ter uma oportunidade lá fora – fazem parte da oferta disponível. «Normalmente são cursos que lhes podem dar alguma possibilidade de trabalho. Já fizemos cursos de pintura de construção civil porque…enfim, as mulheres também pintam, não é?», diz entre risos. «Já fizemos cursos de agricultura; de cozinha, e temos inclusivamente o testemunho de uma ex-reclusa que começou a trabalhar numa fábrica de peixe, exatamente porque teve essa aprendizagem cá dentro», revela, não escondendo o orgulho. «Agora temos dois cursos a funcionar: o de cozinha e o curso de mesa. As pessoas que os lecionam vêm de fora, do Centro Protocolar de Formação Profissional para o Sector da Justiça (CPJ). Quando estes terminarem, daremos início a duas novas formações, sendo que um deles vai ser o curso de cabeleireiro, porque temos aqui algumas pessoas que lá fora já trabalhavam nessa área», conta a diretora. «Informamo-las sempre da qualidade dos cursos e do quão importantes podem ser para as suas vidas. Portanto, são imbuídas nessa vontade e acabam por perceber que realmente lhes podem fazer falta e que será bom para elas…um dia.».

A «motivação» das reclusas é um ponto importante para a diretora, que tenta, por isso, manter uma proximidade diária com estas mulheres. «Faço questão de ir sempre à zona prisional, mas quem trata dos cursos e dessas burocracias todas é a minha adjunta – a técnica de apoio dos serviços à execução da pena -, é ela que acompanha mais de perto as reclusas», diz. 

O esforço não parece ser vão: o feedback é até bastante positivo e as histórias de sucesso de quem dali sai – como a da tal antiga reclusa que arranjou trabalho numa fábrica de peixe –, ainda que contadas pelos dedos das mãos, são já algumas. «Tivemos o exemplo de uma reclusa que trabalhou no município de Odemira, no âmbito de um protocolo pré-estabelecido com o município e a Direção-geral de reinserção e serviços municipais, e soubemos, recentemente, que está a concorrer para um lugar na câmara. Já saiu em liberdade há algum tempo e agora pode ter essa oportunidade. Não sabemos se vai conseguir, mas pode ser uma das hipóteses para ocupar este cargo, e era muito bom para ela.», refere a responsável. 

As histórias não ficam por aqui. «Também tivemos uma reclusa que abriu a sua própria empresa de limpezas quando saiu em liberdade. Portanto, estas competências que lhes damos aqui dentro, acabam por servir de alguma coisa para conseguirem arranjar uma forma de estar lá fora».

O rigor dos horários

Enquanto fazemos uma visita pelas instalações da prisão, a diretora vai contando ao b,i. que aqui dentro «há horários rígidos para tudo». «Temos horários para acordar, às 08h da manhã – a chamada abertura -, e para o fecho, que se concretiza às 19h00. E o que é que isso significa? Significa que todas as reclusas saem e regressam às suas celas a essa hora», explica.

Paramos em frente a uma das celas e a responsável dá ordens para abrir a porta. O molho de chaves que a guarda prisional traz consigo abre a porta e, apesar de não nos ser permitido entrar, podemos olhar o pequeno espaço por curtos segundos: há um beliche, um armário, fotografias na parede. O lavatório e a sanita são separados por uma cortina rosa com golfinhos – ao fundo, uma secretária. Tranca-se de novo a porta e continuamos. «Também temos horários para as refeições, para a escola, horários de trabalho», repete. No que toca ao lazer, Paula Martins garante que todas as reclusas têm todo o direito a aproveitar o tempo livre da forma que entenderem, desde que as regras sejam, evidentemente, cumpridas.

O resto, Mara e Fátima contam.

Histórias de um percurso atribulado

A conta parece simples: cometeram crimes, foram julgadas, condenadas, e aqui estão. Mas os primeiros tempos de pena, dizem estas duas mulheres, não foram nada fáceis. 

Mara Cristina tem 36 anos, está presa por violência doméstica – relativa aos filhos, na altura menores -, e foi condenada a seis anos de prisão. Cumpre pena há três. «A relação com o pai dos meus filhos durou 18 anos e sempre foi à base de violência doméstica. Na minha infância, a minha mãe também me batia. Quando tudo aconteceu eu estava a passar uma fase complicada da minha vida», começa por contar. «Entrei numa depressão profunda e certos comportamentos dos meus filhos, principalmente da minha filha mais velha, tiravam-me do sério e eu acabava por reagir de forma violenta», continua. A história é longa. «Descobri que a minha filha andava a consumir drogas, e eu não sabia de nada. Um dia ela vinha estranha da escola. Subiu as escadas de casa, entrou no quarto do irmão para ir buscar uma caneta, que por acaso era dele, e começou a dar-lhe pancada a sério, pontapés, murros, tudo. Comecei aos gritos e subi as escadas e ela tinha acabado de lhe dar um pontapé na barriga. O menino foi projetado para mim, agarrei-o com as mãos e vi que tinha a cabeça aberta», explica. «Deitei o miúdo no sofá e comecei a discutir com o meu marido porque ele estava ali perto das escadas e não foi capaz fazer nada. Depois, voltei atrás, confrontei a minha filha e pronto…foi aí que lhe bati», continua. «Depois desse episódio os miúdos foram-me retirados e entregues a uma instituição. Passado pouco tempo fui condenada». Apenas foi presa um ano depois, em 2015, quando a filha fez uma queixa na esquadra. «Sofreu alguma pressão do pai e depois no interrogatório, o meu ex-marido também disse coisas que não eram verdade, coisas que até foi ele que fez. Acabei por ser julgada por tudo», revela. «E a palavra de uma criança em tribunal? Vale muito», diz.

Nunca colocou a hipótese de ser presa, e admite que, de certa forma, «se sente injustiçada» porque muitas coisas que foram apresentadas em tribunal não correspondiam à verdade. E lidar com a família depois disto? A resposta chega com lágrimas à mistura. «Foi um episódio que nunca devia ter acontecido. Para o meu pai foi muito doloroso. Evita sempre vir…ele vem, mas só quando as saudades apertam. Com cerca de três anos ainda por cumprir, Mara afirma que tem usado também o tempo para repensar o seu caminho. «O ser humano aprende com os seus erros, embora às vezes não esteja ciente das consequências que pode ter, acaba por aprender sempre com eles. É preciso cairmos para nos levantarmos. Mas, acima de tudo, é preciso ter inteligência para nos sabermos levantar», conclui. 
Agora, apenas sonha com uma vida normal. «Tinha uma vida digna e vou ter uma vida ainda mais digna. Só quero um trabalho e uma vida normal como qualquer cidadão». Dentro destas quatro paredes, diz ter uma vida «ativa» e um ombro amigo: a sua parceira, a Fátima.

Maria de Fátima também não teve uma vida fácil. Tem 38 anos, está condenada por tráfico de droga e cumpre pena há três – apanhou cinco anos e meio. «Eu era uma rapariga normal, vivia numa aldeia, fui estudar para fora, comecei a consumir drogas e mais tarde comecei a traficar também. Acabei por ser apanhada e vir presa», começa por contar. «A polícia já tinha uma investigação a decorrer e um dia eu estava em casa, arrombaram-me a porta, entraram por ali e levaram-me», explica Fátima. O seu início aqui dentro também não foi, tal como Mara, nada fácil. «Quando entrei foi complicado. Aliás, muito complicado, principalmente porque tenho três filhos e o meu marido também está preso em Olhão. A minha filha mais velha tem 21 anos e é difícil encaixar que a mãe está presa por tráfico de droga», revela, frisando sempre que, independentemente de tudo, sempre foi bem tratada, embora considere que as pessoas têm que se deixar ajudar. «Muitas vezes os outros querem ajudar, mas só se deixa ajudar quem quer. E eu queria ser ajudada, eu precisava de ajuda», assume. «Neste momento não posso dizer ‘Ah, eu mudei!’. Não, eu não mudei. Limei as arestas que estavam erradas. Agora tenho consciência de que estava errada. O estilo de vida que levava, além de não estar correto perante a sociedade, estava a prejudicar muito mais a minha família e os meus entes queridos», diz. «A nossa liberdade termina quando começa a liberdade do outro. E aqui dentro voltamos a reaprender isso e acabamos por voltar a tomar gosto pelas próprias regras», explica Fátima, referindo-se ao facto de existirem horários e rigidez, com os quais concorda a cem por cento. «Se hoje em dia me disserem para fazer de forma diferente, eu própria não me sinto bem, porque as regras fazem com que tenha vontade de me levantar de manhã, de fazer a minha própria cama, de fazer a limpeza da minha cela, de fazer a minha alimentação a tempo e horas…essas regras são boas. Fazem-nos bem». E dá um exemplo: «Provavelmente lá fora, quando estava em liberdade, descurava a minha própria saúde por não me impor a mim própria regras. E isso foi uma oportunidade que aqui dentro me deram e que eu consegui agarrar muito bem porque percebi que tinha de fazer alguma coisa para mudar a minha vida».

Fátima não sabe o que o futuro lhe reserva, mas fica contente se continuar a trabalhar na empresa de etiquetagem onde está agora e se conseguir encaminhar a sua vida. «Na verdade, esperava que me saísse o Euromilhões», diz entre risos. «Visto que esta é uma probabilidade reduzida, embora não seja impossível, espero conseguir retomar a minha vida. Tenho esperança de que esta reinserção social que estão a fazer comigo, e que fazem com todas as reclusas aqui dentro, dê os seus frutos e me dê um bom futuro quando sair em liberdade», revela enquanto põe um sorriso na cara.