Fernando Van Zeller Guedes era conhecido como o senhor Fernando Guedes. Sucedeu ao pai tanto em nome como no epíteto de patriarca da Sogrape. E foi esta a dupla responsável pela arquitetura desta que é uma das maiores empresas de vinhos do país e cujo pilar se resume num valor: família. «Costumo dizer que os acionistas a quem só o dividendo interessa não se sentirão muito bem na Sogrape. Porque a nossa aposta na criação de valor visa, acima de tudo, fazer crescer o negócio e valorizar o património humano. Sempre fomos assim: é uma questão de educação e de cultura», dizia Fernando Guedes, citado numa nota biográfica divulgada esta semana pela empresa.
O patriarca morreu esta quarta-feira, aos 87 anos. Deixa como legado um verdadeiro império que levou os vinhos portugueses aos quatro cantos do mundo, seguindo a mesma máxima que o seu pai, que fundou a então Sociedade Comercial dos Vinhos de Mesa de Portugal, em 1942: «Na Sogrape fazemos amigos antes de fazer negócios».
Na mesma nota biográfica, a empresa descreve Fernando Guedes como «um verdadeiro ‘gentleman’ que irradiava um charme cativante, uma afabilidade permanente que quase o levava a pedir desculpa quando explicava que o bem-sucedido percurso da Sogrape assenta nos valores da educação de uma família antiga, que viveu sempre da agricultura e sempre cultivou o respeito pelo próximo como forma de estar, recusando-se a encarar o lucro como objetivo primeiro».
Nasceu no seio de uma família fidalga nos últimos dias do ano de 1930, a 29 de dezembro, num local quase premonitório: a Quinta da Aveleda, em Penafiel. Depois, estudou no Colégio Brotero, na Foz do Douro, e no Colégio das Caldinhas, em Santo Tirso.
Foi Fernando Guedes quem pediu ao pai para entrar para a empresa em 1952, contou em 2012 numa entrevista à Notícias Magazine. Ainda passou pela Faculdade de Economia de Lisboa, mas preferiu não acabar o curso. «O meu pai perguntou-me ‘O que é que tu sabes? Sabes como se faz uma pipa?’, e eu respondi ‘O que é uma pipa?’. ‘O casco’, respondeu ele e disse-me: ‘Então vais ser tanoeiro’».
Iniciou assim o seu percurso na Sogrape, a ganhar 500 escudos («Não era mau», disse na mesma altura). Acabou por ir estudar Enologia para a Faculdade de Ciências da Universidade de Dijon, em França, mas os primeiros passos na Sogrape começaram efetivamente como o pai lhe ditou: a fazer pipas.
Hoje em dia, a admissão na empresa a novos membros da família continua a ter regras que fazem, inclusivamente, parte dos estatutos: antes de um descendente ser contratado, tem que trabalhar por um período de cinco anos fora da Sogrape. Só depois serão, consoante as suas aptidões e currículo, admitidos – e se houver um lugar disponível. «Por isso, as pessoas têm de dar o exemplo a quem não é da família. E se não são tão bons como os de fora… Então onde é que íamos parar? Quem mandava? Quem está abaixo ou quem está acima? ‘Tu não sabes nada’, ‘ah, mas sou patrão’. Mas o que é que isso interessa?», justificou na mesma entrevista.
Voltou a Portugal com o diploma de enólogo, tornando-se assim num dos três primeiros enólogos portugueses. Casou em 1956, com Ana Mafalda Maria Antónia de Mello Falcão Trigoso da Cunha Mendonça e Menezes e tiveram três filhos: Salvador, Manuel Pedro e Fernando. Hoje, são eles a terceira geração da família fundadora e os responsáveis por levar a empresa a bom porto.
Um ano depois do casamento, assume a Direção Técnica de Produção da Sogrape e, segundo a revista Grandes Escolhas, especialista em vinhos, desenvolve «um profundo trabalho de construção e modernização das infraestruturas da empresa em todo o país». A mesma publicação, que lhe concedeu recentemente o prémio Sr. Vinho, refere-se a Fernando Guedes como «um senhor, no que isso implica de boa disposição, de educação, de atenção aos pequenos pormenores, de disponibilidade para receber convidados, fossem jornalistas ou fossem homens de negócios». E fala de uma espécie de ‘método Sogrape’, por ele inventado. «Sempre pronto para visitar as várias adegas da empresa, em todo o lado punha o seu cunho, quer na decoração, quer na exigência de perfeição de procedimentos que exigia a todos os seus funcionários e que todos acabaram por incorporar. Seria quase um ‘método Sogrape’, um manual de bem-estar, de bem-fazer e bem-receber». Também a Revista de Vinhos o agraciou ainda este ano com o prémio Homenagem.
Nas últimas décadas, a empresa nunca parou de crescer e foi adquirindo outras casas de renome, como Ferreira, a Sandeman ou a Offley. Entre os rótulos que foram juntando ao portefólio – que teve como trampolim o Mateus Rosé [ver texto ao lado] conta-se o distinto Barca Velha.
E daí partiram para o mundo, numa estratégia que começou a ser aplicada de forma mais consistente a partir dos anos 80. Hoje, a Sogrape produz vinhos em Portugal, Espanha, Chile, Nova Zelândia e Argentina. Atualmente, empregam cerca de um milhar de trabalhadores e, segundo o Jornal de Negócios, comercializam 35 garrafas de vinho por minuto. Só em Portugal, têm 830 hectares de vinha espalhados pelas mais importantes regiões vitivinícolas portuguesas: Dão, Verdes, Bairrada, Alentejo e Madeira.
O patriarca assumiu a presidência da Sogrape em 1987 e permaneceu neste posto até 2000. Primeiro, seguiu-se na sucessão o primogénito Salvador Guedes, diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica em 2012, pelo que o filho mais novo, Fernando, passou a dirigir a empresa em 2015. Mas Fernando Pai continuava a ir aos escritórios todos os dias e era ainda presidente do Conselho de Administração.
O enólogo, que assumia ser apaixonado pelas questões mais técnicas, foi distinguido por diversas vezes pelo seu labor. Em 2010, por exemplo, eleito ‘Produtor Europeu do Ano’ e no ano passado, foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique por Marcelo Rebelo de Sousa.
Fernando Guedes gostava de caçar, de antiguidades e preferia vinho tinto. Um dos seus últimos grandes projetos – um tinto, de 2013 – chamou-se Legado. E, segundo se lê na página da empresa, é um retorno às origens. «Legado representa um tributo de Fernando Guedes e da sua equipa ao melhor que o Douro tem, uma singela homenagem às raízes da Sogrape. O regresso aonde tudo começou há 75 anos, o ponto de partida de um sonho que continua a projetar-se no futuro».