Há muito que um álbum conjunto de Beyoncé e Jay-Z era especulado. Certezas? Poucas. Secretismo? Total. E quando a névoa dera lugar ao silêncio, a segunda noite da paragem londrina da digressão On The Run foi interrompida pelo anúncio surpresa de Everything Is Love. A terceira parte de uma trilogia iniciada em Lemonade, de Beyoncé, e continuada em 4:44 de Jay-Z. «Estávamos a usar a arte quase como uma sessão de terapia», explicava o rapper ao New York Times em Novembro. «E começámos a fazer música juntos».
Lemonade, uma novela ficcionada construída sobre cenas de infidelidade e perdão da família real americana da pop, abriu o precedente e mostrou feridas. Em 4.44, Jay-Z respondeu com a sua visão dos factos. Por exemplo, na canção ‘Family Feud’ quando escreve ‘separation within the culture’ e ‘tensions in the black community and at home’. O lugar na mesa dos Carters – a forma como o álbum é assinado – para Everything Is Love é o da reconciliação. Unidos, disparam em várias direções. Contra o Spotify, plataforma rival do Tidal, o serviço de streaming detido por Jay-Z: ‘If I gave…two fucks about streaming numbers woulda put Lemonade up on Spotify. Fuck you’, rappa Beyoncé. (ironia suprema, o exclusivo Tidal durou um dia e meio, e na segunda-feira Everything Is Love já estava disponível em todas as plataformas). Contra o Super Bowl quando Jay-Z assume ter recusado o convite para o intervalo mais mediático e lucrativo da televisão americana e do desporto em geral ( ‘I said no to the Super Bowl/You need me, I don’t need you/Every night we in the end zone/Tell the NFL we in stadiums too’). E contra os Grammy, para os quais Jay-Z estava nomeado em oito categorias por 4.44 e saiu dos prémios com um gigante e embaraçoso número redondo. ‘Tell the Grammys fuck that 0 for 8 shit’.
No entanto, todas as conversas vão dar a Apeshit e ao vídeo filmado no Louvre. A expressão máxima de ‘Niggas in Paris’, o hino escrito por Jay-Z e Kanye West. Em 2011, o futuro próximo era fixado em single e não passava pelo bairro, pela rua ou por descapotáveis, como na história conhecida do hip hop, mas pela grande arte indisponível até agora à comunidade negra. Só que o mundo mudou. Um mês depois de terem visitado o Louvre pela quarta vez numa década de compromisso, Beyoncé e Jay-Z solicitaram o panteão da arte para filmar um vídeo. Um raro acontecimento mas não inédito – em 2003, Bernardo Bertolucci ali filmou cenas de Os Sonhadores. «Os prazos eram muito apertados mas o Louvre ficou rapidamente convencido porque a sinopse revelou uma ligação real ao museu e às suas adoradas obras», explicaram responsáveis do museu em comunicado posterior.
E enquanto se fala de maços de notas, Lamborghinis, multidões alvoraçadas e tudo aquilo que possa ilustrar ideais de grandeza, controlo e afirmação entre uma nova cultura dominante, Mona Lisa, a Vitória de Samotrácia e a Vénus de Milo parecem assentir para com esta tomada do poder no Séc. XXI. O sonho de Kanye West quando imaginou Yeezus como uma peça de arte moderna inspirada em Le Corbusier, Picasso ou Gauguin foi levados letra pelo casal-cartaz da América de todas as luzes. E Apeshit – palavrão nada simpático que em linguagem moderada pode ser traduzido por excremento de macaco – elevado à condição de obra de magna arte. Pop e de grande consumo – os milhões de visualizações acumulam-se diariamente – mas uma peça artística habitante do mesmo condomínio da grande arte de que se ouve falar nos livros de História.
E enquanto o espanto dá lugar ao debate sobre a autorização do Louvre e a ousadia de Beyoncé e Jay-Z, os números vão subindo e a curiosidade aumentando. Nem a América tem monarquia, nem a realeza americana um casamento perfeito, como nos contos de fadas, mas usa a criação para superar dramas e exorcizar demónios. E a novela vai somando temporadas, audiências e milhões.