MUNDIAL. Esta noite somos donos do céu

Com mais arte ou mais manha, Portugal decide hoje, frente ao Uruguai, o seu futuro neste Mundial que parece jogado em play-back.

SOCHI – José Márcio Pereira da Silva: calculo que muito poucos saberão quem é. Zequinha: há aos pontapés, tanto em Portugal como no Brasil. Foi ponta-direita do Botafogo e do Grémio. No dia 11 de Julho de 1971 vestiu a camisola canarinha contra a Áustria, em São Paulo, no Morumbi. Ocasião de estalo: Pelé despedia-se da seleção brasileira. 1-1: Pelé marcou o golo, claro, e Zequinha esteve na jogada. No final chorava convulsivo: «Vocês viram?! Viram?! Pelé agradeceu-me o passe!».

Podemos concluir este silogismo sofistico assim: não há Pelés sem Zequinhas. E talvez a conclusão vá muito para além de uma banal falácia.

André Gide, Nobel da literatura, resumiu desta forma a ideia que Fernando Santos impôs na equipa de Portugal: «Não há qualquer relação entre o sucesso e a qualidade artística».

Depois que se levantem as vozes a favor ou contra.

Esta noite, na Fisht Arena de Sochi, Portugal e Uruguai decidirão qual dos dois vai estar nos quartos-de-final do Campeonato do Mundo que a Rússia realiza. Um Mundial tão, tão marcado pelas intervenções televisivas dos árbitros que é como se fosse vivido em play-back. A decisão desintegrou-se, a autoridade foi abandonada, entregue ao gabinete dos juízes voyeurs. Nada pode mais ser dado como certo. Não vale a pena festejar golos ou levar as mãos à cabeça por causa de um penálti cometido. Primeiro vamos a Tribunal. Confesso: maça-me. Desinteresso-me destes jogos mecanizados. Proporia, se fosse possível, que deixassem as coisas correrem normalmente até ao fim e se fizessem contas já na cabina. Olha, ficou 3-1, mas há que descontar aqui um golo mal anulado e um penálti que não foi: fica 2-0. Depois transmitem-nos o resultado quando chegarmos a casa: o futebol de mercearia seria mais castiço.

Enfim, também nestas discussões há Pelés e há Zequinhas e ninguém é dono de uma razão absoluta. É o que temos por agora e até à final de Moscovo já nada será alterado. Viremos então as atenções para a ordem ordenada de que falava Manuel Alegre imposta na equipa que desde há dois anos empunha orgulhosa o facho a arder na noite escura de campeã da Europa. E para o dilema que tem dividido os críticos, os analistas e os adeptos: mais talento ou mais rigor; mais poesia ou mais prosa. Algo de muito parecido com a velha teoria de Paul Samuelson em Economics que metia o balanço entre a manteiga e os canhões.

Eu, declarado abencerragem do talento sinto, por vezes, comichões no sangue quando o vejo desperdiçado por troca com a tal conjuntura do poeta que invadiu o coração.

Serão os portugueses capazes, hoje, ao enfrentar um adversário de certa forma estranho, alheio aos estilos a que estão habituados, com quatro torres impressionantes, Gimenez e Godin no centro da defesa e Suarez e Cavani no centro do ataque, entrar na festa que liberte o verbo ser e juntar ao resultado que todos desejam a alegria que parece sempre encafuada na cave dos receios e entregue somente às decisões de Ronaldo e de Quaresma? Terão a audácia de afirmar para si mesmos, como na canção: «Esta noite somos/Donos do céu!»

Ronaldo não pode ir embora

Não, não estou aqui a esquecer-me do Uruguai e da sua inequívoca qualidade tanto individual como coletiva. Seria estultícia fazê-lo. Ainda assim, e prevendo que os sul-americanos vão estar muito mais perto daquilo que foi o nosso adversário inaugural, a Espanha, do que propriamente Marrocos e Irão, embora frente a Marrocos tenhamos entregado a bola com a facilidade de alguém que se liberta de um incómodo, de um constrangimento ou algo do género.

Desde o jogo de Paris (ponto culminante de uma série de jogos essencialmente práticos) que a discussão sobre a qualidade do futebol praticado por aquela a quem um dos antigos mestres, Ricardo Ornellas, chamou um dia de equipa-de-todos-nós, se instalou. Firme, Fernando Santos repete o mantra da sua crença absoluta: ganhar, não importa como, mesmo que tenhamos de sofrer minutos infinitos de angústia, prolongamentos esgotantes, desempates através de grandes penalidades capazes de provocar os aneurismas que tanto preocupavam o Alencar de Os Maias.

O meu querido amigo Manuel Alegre, uma daquelas pessoas que fez o favor de muito me ensinar, gosta de dizer que os poetas têm sempre razão. Pode ser. Voltaremos a falar sobre isso. Mas aproveite-se o ensejo e cite-se outro poeta, enorme, o Torga, para afirmar que este Portugal continua a ter de fazer contas com a Dona da Pensão da Vida.

O facto de ser campeão da Europa não exime uma equipa das suas responsabilidades para com aqueles que vivem intensamente a paixão mágica por um jogo que, quando levado à excelência, é absolutamente inebriante. Não restarão muitas dúvidas que, mais Pelé ou menos Pelé, mais Zequinha ou menos Zequinha, Portugal deve a si próprio, ao momento superlativo de Ronaldo, e ao mundo inteiro, mais jogos como o que disputou aqui mesmo, frente à Espanha. De preferência sem o protagonismo absoluto daquele que vem provando neste Mundial ser o melhor jogador do universo. E que, por isso, não tem o direito de ir já para casa.