Uruguaios caçavam portugueses a patadas

Portugal e Uruguai defrontaram-se duas vezes – na preparação do Mundial de 1966 (vitória lusa por 3-0) e na Minicopa de 1972 (empate 1-1). Messias, no final desse jogo, desabafava: «Foram os adversários mais ordinários que já defrontei».

SOCHI – Um Portugal-Uruguai não faz propriamente bimbalhar os sinos da torre da igreja da aldeia da memória. Apenas por duas vezes as duas seleções se defrontaram e já lá vão uns anos valentes somados em décadas. A primeira foi no Estádio Nacional, no dia 26 de junho de 1966, um jogo de preparação para a fase final de um Campeonato do Mundo que estava ali a bater à porta, em Inglaterra, país que viu, por sua vez, a equipa de Portugal bater a porta do grande futebol, com Eusébio à frente, tornando-se na mais brilhante equipa do torneio só caída aos pés da seleção da casa, em Wembley, num jogo que poria um fim doloroso ao Verão do nosso contentamento, para usar, a propósito, uma expressão do eminente William Shakespeare, autor de uma nação.

Três golo de José Torres numa vitória por três-a-zero, sem espinhas, provando que a seleção comandada por Manuel da Luz Afonso e Otto Glória estava mais do que pronta para o que aí vinha. 

Cinco anos mais tarde, já o Brasil de Pelé, Rivelino, Jairzinho, Gerson, Tostão e por aí fora num nunca acabar de estrelas de brilho supino recuperara o trono de melhor futebol do planeta, Portugal e Uruguai voltaram a encontrar-se numa competição que serviu para comemorar, precisamente, os 150 da Independência do Brasil e o grito de Pedro de Alcântara soltado junto às margens plácidas do Ipiranga, brado retumbante de um povo heroico, e o sol da liberdade em raios fúlgidos, etc, etc, etc, com a devida autorização de Joaquim Osório Duque Estrada, autor da letra.

1971: chamaram-lhe a Minicopa. A Confederação Brasileira de Desportos não deixara a coisa por menos: um verdadeiro Campeonato do Mundo com vinte seleções nacionais e continentais disputariam, em 12 estádios, um troféu majestoso. Quinze equipas – Argentina, Seleção de África, França, Seleção da América Central, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Paraguai, Irlanda, Venezuela, Chile, Irão, Equador, Jugoslávia e Portugal – seriam distribuídas por três grupos; outras cinco – Brasil, Uruguai, URSS, Checoslováquia e Escócia – ficariam isentas da primeira fase. Em seguida, formavam-se dois grupos de quatro equipas que decidiam o acesso à final em sistema de ‘poule’. 

 

Cinco vitória a fio!

Portugal apresentou-se nessa Minicopa com José Augusto como seleccionador, Eusébio capitão trintanário, e alguns jovens prometedores, casos de Nené, Humberto Coelho, Artur ou Jordão, por exemplo. Cinco vitórias nos cinco primeiros jogos: Equador (3-0), Irão (3-0), Chile (4-1), Irlanda (2-1) e Argentina (3-1). Seguia-se o Uruguai. E foi abracadabrante!

José Henrique, o enorme Zé Gato do Benfica, queixava-se no final dos murros e golpes que sofrera de cada vez que saltava à bola com os adversários: «São umas bestas!»

As bestas eram os uruguaios.

Os sul-americanos estavam avisados, e bem, daquilo a que os portugueses haviam sujeitado os seus vizinhos argentinos, toureados no Maracanã perante um público brasileiro maravilhado que se repetia em olés de escárnio, ferozes e provocantes como bandarilhas no lombo de um touro bravo. Nesse dia 2 de julho, encaixaram-se nas suas tamanquinhas, fecharam-se no rés-do-chão da sua defesa, e saltavam aqui e além para contra-ataques aporrinhantes. Num deles, Morena serviu Latuada, José Henrique fez que ia e não foi, Artur baralhou-se, e vantagem para os da Celeste. 

Eusébio, Dinis e Jordão, as três pérolas negras do ataque lusitano, desmultiplicavam-se em remates. Carrasco, sereno, defendia tudo o que tinha defesa e até algumas coisinhas miúdas que pareciam destinadas a golos fortuitos.

O um-a-zero parecia que vinha para ficar e foi ficando. 

Em cima do intervalo, Jaime Graça dasarrincou um lance de brilho intenso: foi direito a um adversário, entortou-lhe o pescoço e, quando o outro lhe saltou ao caminho, como quem salta de clavina assestada para a frente de Gonçalo Mendes Ramires, atravessou-o como se de simples fumo se tratasse para, depois, rematar de longe o golo consolador.

Portugal estava à beira de se apurar para a final do Estádio Mário Filho, dito Maracanã, e consegui-lo-ia vencendo a URSS no jogo seguinte.

Faltava, no entanto, ainda meia parte para jogar e os uruguaios não estavam propriamente para brincadeiras. 

Mau feitio

Um uruguaio tem sempre alergia à derrota. Ou às pequenas derrotas que se sucedem dentro de um jogo de futebol. É gente de mau feitio, dedo na cara, gritos e o diabo, para baixo dos adenoides vale bater em tudo quanto mexe e, já agora, para cima deles também.

Foi assim que reagiram à forma como Portugal tomou conta dos segundos quarenta e cinco minutos. Deram feio, mas feio.

Messias não era de modas: «Foram os adversários mais ordinários que defrontei em toda a minha vida!»

E Jordão: «Sei que tive aquela oportunidade fantástica de fazer o 2-1 à beira do final, mas que querem? Voei para cabecear a bola e um defesa deles acertou-me em cheio. Ele não quis saber do lance. Só queria era dar-me pancada».

O jogo deixa de ser jogo, passa a ser uma caçada.

Os uruguaios foram atrás dos portugueses a patadas como se perseguissem ratazanas. Usam e abusam dos cotovelos; disparam pitons às canelas contrárias; entram num desnorte de raiva incontida que lhes obnubila a visão e lhes injecta os olhos de sangue.

Atirados às feras de um circo romano, os jogadores de Portugal procuram trocar a bola, tirá-la de vez do centro das atenções dos seus opositores, e visam a baliza de Carrasco sempre que podem. Eusébio, em novo momento superlativo da sua carreira marcada pelas lesões, é um franco atirador mas os seus tiros falham o alvo.

A superioridade lusitana não se espelhará no marcador. O empate não se desmancha.

«Os uruguaios defraudaram o jogo por completo», lastimava-se Artur, o Ruço – «O árbitro foi ridículo e permitiu tudo. Em violência eles ganham, em futebol nós somos muito superiores como ficou demonstrado em campo».

O segundo Portugal-Uruguai da história ficou pintado a negro.

Seguia-se a URSS em Belo Horizonte, vinha aí nova vitória (1-0) e o apuramento para a final perdida para o Brasil com um golo solitário de Jairzinho no último minuto. Mas a noite merecia distracção: os jogadores portugueses jantaram no Sambão antes de pegar o avião, como canta Chico Buarque, com toda a razão para correr assim. Era gente com pressa. E sequiosa de vitórias.