A Europa continua a léguas de encontrar uma solução para a sua ferida mais lancinante e continua no caminho das semi-soluções de circunstância, coladas a cuspo, vagas, e que pouco disfarçam o facto de o preço do fracasso ser hoje superior ao que era no passado – mesmo que a crise das migrações, em si, não passe de um espetro do que foi no seu auge de outubro de 2015. A crise está agora menos relacionada com a chegada em massa de centenas de milhares de pessoas e mais associada ao fosso ideológico cavado, em primeiro lugar, com a austeridade do colapso financeiro, e aprofundado, mais recentemente, com o terrorismo e – aí, sim – a crise das migrações. A comunidade vive uma crise existencial crescente, mas dispõe de menos armas para a combater. Se Jean-Claude Juncker apresentou em 2015 um plano insuficiente e fracassado de distribuição compulsiva de refugiados, esta semana os líderes europeus não conseguiram sequer aproximar-se da palavra «obrigatório» sem que quatro Estados-membros ameaçassem abandonar a cimeira e, indiretamente, provocar o colapso do Governo alemão. Ou quem sabe, também, dar o primeiro dos últimos passos da UE, como declarou Angela Merkel num discurso ao Bundestag, na manhã da partida para Bruxelas: «A migração pode decidir o destino da União Europeia. Ou conseguimos resolvê-la de maneira a que em África e noutros lugares as pessoas reconheçam que nos guiamos pelos nossos valores e acreditamos no multilateralismo frente ao unilateralismo, ou mais ninguém acreditará no sistema de valores que nos tornou mais fortes».
Por todo o aparente otimismo de Merkel, os Vinte e Oito encontraram-se na quinta-feira para negociar uma reforma à estratégia e lei do asilo europeia que todos sabiam ser impossível. A chanceler, mesmo assim, estava obrigada a abandonar a cimeira com argumentos suficientemente fortes para desarmadilhar a bomba que o seu próprio ministro do Interior e líder do partido irmão bávaro CSU instalou no Executivo. Horst Seehofer anunciou um ultimato de duas semanas que expira amanhã, domingo, e no fim do qual a chanceler alemã teria de encontrar uma solução europeia para diminuir substancialmente – ou até eliminar – a nova chegada de requerentes de asilo e imigrantes. Se isto não acontecer, Seehofer promete encerrar unilateralmente as fronteiras e retirar temporariamente a Alemanha do Espaço Schengen, um gesto que forçará Merkel a demiti-lo, acabar com a aliança de 70 anos entre os conservadores cristãos, dissolver o Governo e iniciar uma crise sem precedentes num dos pilares fundamentais da Europa.
Angela Merkel não conseguiu o acordo que desejava, mas parece ter alcançado um entendimento suficientemente convincente que preserve o seu Governo e a própria comunidade. Trata-se de um contrato vago, temporário e voluntário, que descreve menos uma nova estratégia do que um rumo possível no que diz respeito aos temas da migração. Foi alcançado apenas pelas quatro da manhã em Portugal Continental, ao cabo de quase dez horas de negociações entre líderes. A Itália e o seu novo governo eurocético e antimigração anunciaram desde muito cedo que inviabilizariam qualquer entendimento a não ser que os Estados-membros aplicassem medidas reais para distribuir as suas novas chegadas pelo bloco. Assim fizeram. Ao longo da noite, nada ficou decidido até Roma se mostrar agradada. E uma vez que Hungria, Áustria, Eslovénia e Polónia há muito não aceitam refugiados ou modelos obrigatórios de distribuição, aos outros Estados-membros coube negociar um tipo de quadratura do círculo. O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, agradeceu e recusou novas mensagens de «solidariedade»: «Já basta. Esta é a oportunidade de finalmente demonstrar solidariedade através de atos».
O comunicado da madrugada de ontem convenceu Conte, o seu ministro do Interior, Matteo Salvini, e, muito provavelmente, convencerá também o alemão Seehofer, mas revela menos uma nova estratégia europeia do que confirma a tendência de exportar a crise de Estado-membro em Estado-membro e da Europa para África. Os líderes europeus concordaram em criar grandes centros de acolhimento e seriação de pedidos de asilo semelhantes aos que foram construídos na Grécia e Itália no pico da crise, mas que desta vez serão construídos nos países comunitários que os aceitarem – a solidariedade europeia, por outras palavras, é hoje voluntária, e não um pilar comum. Os 28 concordaram também em reforçar as linhas de financiamento à Guarda Costeira da Líbia e Marrocos, assim como acelerar os 500 milhões de euros prometidos há muito para países africanos de origem, na tentativa de que sejam eles a travar os fluxos em direção à Europa. Promete-se igualmente acelerar os pagamentos à Turquia para que continue travando os fluxos na Europa Oriental e reforçar os apoios aos países europeus na frente da crise, como Itália, Grécia e, cada vez mais, Espanha.
Nada se resolveu em relação à política europeia de asilo no cerne de boa parte do desentendimento. As chamadas Regras de Dublin continuarão em vigor e o primeiro país de contacto com a Europa continuará a ser aquele no qual o aspirante a asilo deve procurar abrigo, o que compromete as nações da linha da frente e oferece álibis a praticamente todos os outros Estados-membros. Seehofer e Merkel encontram-se no domingo e apenas então o ministro do Interior dirá se está satisfeito com o o acordo. Vários membros da sua CSUanunciaram ontem que o entendimento é suficiente para extinguir a crise alemã, que, em muitos sentidos, é um microcosmo do marasmo europeu. Os seus aliados ideológicos na Europa, afinal de contas, celebravam ontem um acordo que afasta a crise das costas comunitárias e, para além disso, deixa impune o bloco dos eurocéticos, dos xenófobos e dos nacionalistas. A Itália continuará a expulsar os barcos de refugiados. O Grupo de Visegrado e a Áustria, por sua vez, fizeram valer as suas vontades. E Salvini, o ministro italiano do Interior e um dos dois verdadeiros líderes em Roma, garantia ontem ao país que as organizações de resgate não se aproximarão do país. «As ONG apenas conseguirão ver a Itália em postais».