MOSCOVO – Estamos na véspera da 21.ª final de um Campeonato do Mundo de futebol, não tarda muito a cumprir 100 anos de idade, algo que revela uma capacidade extraordinária de se ir adaptando aos novos tempos, às eras que sobre era se somam às eras que são, como diria FernandoPessoa. Em Moscovo, cidade imarcescível, que se transformou, de há algum tempo para cá, numa das autênticas capitais do mundo, com tudo o que um homem possa querer ao estender da mão, no Estádio Luzhzini, que já se chamou em soviéticos tempos Estádio Lenine, certamente com cerca de 80 mil espetadores nas bancadas, França e Croácia discutirão, sobre o relvado, não apenas conceções diferentes de estilo como visões diversas de tempo e de importância intrínseca desse tempo.
Pela terceira vez na final de um Mundial nos últimos 20 anos (juntando pelo meio duas finais do Campeonato da Europa), não há forma de não olhar par a França como uma das maiores potências do futebol deste planeta quase redondo não fosse essa obstinação de se manter achatado nos polos.
Quando eu era miúdo, a França olhava para o seu passado de 1958 (terceiro lugar no Mundial da Suécia) como os portugueses olhavam, lágrimas de saudades cristalizando em sal nos cantos dos olhos, para oPortugal de 1966, em Inglaterra.
E que diferença, entretanto.
A França, ‘la douce France’, chega à final de Moscovo com mais empáfia do que as tropas de Napoleão, que não foram muito mais longe do queSampetesburgo: traz às costas dois títulos europeus e um título mundial. Está, definitivamente, naquele Olimpo magnificente onde não há lugar para muitos, pelo contrário, há lugar para muito poucos.
Até hoje, disputados 21 campeonatos do mundo, só oito países conseguiram levar a taça para casa:Brasil (5 vezes), Alemanha e Itália (4), Argentina e Uruguai (2), Inglaterra, França e Espanha (1). Não surpreende que os franceses surjam com uma gana incontrolável: estão à beira de entrar para um clube ainda mais exclusivo, aquele dos que têm mais do que um título. Percebe-se, pela forma como jogam, pela maneira como renovaram o conjunto em pontos fundamentais com jogadores fundamentais, que nada do que aconteceu aqui, na imensidão incomparável da Rússia, foi por acaso. Didier Deschamps não caiu no erro de pensar que a final perdida há dois anos, em Saint-Denis, noEstádio de França, foi matéria de simples infortúnio ou de mera influência lunar que tomou conta do Portugal campeão da Europa. E foi à procura das falhas, das imperfeições. Como mecânico experimentado, fez uma revisão total que foi desde a árvore de cames aos carretos, do carter às cambotas, sem esquecer as velas e os balancins. E afinou um conjunto que, só por si, não tinha grandes defeitos.
A França deste Mundial tem sido imperial como o marido de Josefina. Um Napoleão sem Waterloo, sem exílio em Santa Helena. Preparada para entrar em todas as batalhas cantando a alta voz aquele foi o grito de guerra dos soldados do Reno, mais tarde chamado de Marselhesa: «Aux armes, citoyens/Formez vos bataillons/Marchons, marchons!/Qu’un sang impur/Abreuve nos sillons!».
Os croatas
De sangues impuros percebo pouco, mesmo aqui, nesta Rússia marcada pela doença do sangue da sua última família de czares, os Romanov, diminuídos pela hemofilia. Já os gregos falavam de um povo de origem ariana formado pelos Horouathos, que se afirmava nas margens do Mar de Azov e na Crimeia.
O seu orgulho era tão profundo como o destes croatas de agora, à beira do maior feito desportivo da sua história, a apenas um jogo de tomarem aquele lugar invejável que a Checoslováquia (2 vezes), a Hungria (2 vezes) ou a Holanda (3 vezes) estiveram à beira de ocupar.
Este foi, para mim, um Mundial proletário. Cedo as grandes estrelas foram para casa não deixando saudades, rapidamente as cabeças coroadas do Brasil, da Alemanha ou da Argentina foram desbancadas dos seus altares, surpreendentemente surgiram novas seleções e novos nomes para que a gente faça favor de os não esquecer.
Não é difícil sublinhar, por entre os demais, Bélgica e Croácia. Foram estas duas equipas que trouxeram ao Campeonato do Mundo disputado nas imensidões da Rússia, um laivo de liberdade, de rebeldia e de coragem. Tiveram ao seu lado a poesia. Foi a França que ousou, como se dizia na antiga Petrogrado, por via da morte do poeta Gumiliov, fuzilado nas ruas pelos bolcheviques, massacrar a poesia da Bélgica.
Submeteram-se os belgas na meia-final perante a força matemática dos seus adversários franceses. Deram razão ao seu grande escritor Hugo Claus: «Temos de nos sujeitar. Durante toda a nossa vida tivemos de nos sujeitar!».
Calma! A Croácia teimou em não se sujeitar. Não se sujeitou frente à Argentina, espancando a equipa de Messi sem piedade: 3-0.
Não se sujeitou à trama dos desempates por grandes penalidades – dois, frente à Dinamarca e frente à Rússia. Não se sujeitou ao cansaço dos prolongamentos – três, Dinamarca,Rússia e Inglaterra. Não se submeteu ao seu próprio desgaste físico, tão evidente na segunda parte do prolongamento frente à Rússia, tão inexistente na segunda parte do prolongamento contra a Inglaterra.
Facto: amanhã, quando subirem ao relvado do Estádio Luzhniki para o jogo mais importante da história do futebol do seu país ainda tão jovem mas cujas origens se perdem há mais de dez séculos, os bravos croatas, comandados por um extraordinário Modric, para mim o melhor jogador deste Campeonato do Mundo, levarão injetada nos músculos, nos tendões e nas articulações, mais hora e meia de futebol nos últimos dez dias do que os seus opositores, já para não falar do desgaste psicológico de desempates dramáticos. Mas levarão, igualmente, a bater no peito, do lado esquerdo, entre a quarta e quinta costela, uma alma sem limites, que vai do azul-impossível do Adrático aos confins de Varazdin, onde começa a Hungria. Estão no ponto mais alto da história!
Quando Pancho Villa entrou em Agua Prieta, ao tempo da Revolução Mexicana, encontrou dependurado no alto da torre da igreja um cartaz de que dizia: «É mais tarde do que pensas». Deu dois tiros no sino para fazer parar o tempo e resmungou para com os seus botões: «Quando te parecer que é demasiado tarde para começar alguma coisa, começa-a logo». É este o espírito das revoluções.