No início de janeiro, 2018 desenhava-se no horizonte como um ano feliz para o Rei de Espanha. Em janeiro, Felipe VI, Rei desde junho de 2014, completou cinquenta anos. O seu perfil apaziguador deu frutos a partir do momento em que pegou nas rédeas da coroa: segundo a imprensa espanhola, desde a década de 90 que a popularidade da monarquia do país não era tão alta – e nem a crise da Catalunha pareceu inverter a tendência. Mas as coisas estão a mudar e 2018 está a revelar-se uma terrível dor de cabeça – que, quase certamente, vai tornar-se crónica – para o monarca espanhol. Primeiro, veio a ordem de prisão do cunhado, Iñaki Urdangarin, que desde 18 de junho cumpre uma pena de cinco anos no estabelecimento prisional de Brieva. O Supremo Tribunal considerou que o antigo andebolista e
marido da infanta Isabel era culpado de desvio de fundos, prevaricação, fraude contra o erário público, delitos fiscais e tráfico de influências pelo seu envolvimento no caso Nóos. Quando foi conhecida a decisão do Supremo Tribunal, o Palácio da Zarzuela reafirmou «o respeito absoluto pelo poder judicial».
Mas este pode ainda não ser o escândalo do ano para a família real. A Audiência Nacional espanhola, o tribunal responsável pelos casos mais sensíveis e assuntos de Estado, ordenou a abertura de um inquérito ao Rei Emérito por suspeitas de fraude fiscal. Caso os resultados apurados no inquérito justifiquem, Juan Carlos pode mesmo ser investigado pelo Supremo Tribunal e ser chamado ao Parlamento para esclarecer as suspeitas, o que seria uma situação inédita e capaz, por si só, de abanar os alicerces que Filipe VI tanto se tem esforçado por manter. Uma coisa é o cunhado, outra é o próprio pai, Rei de Espanha durante 39 anos (entre 1975 e 2014).
Anatomia de uma derrocada iminente: ‘Las Cintas de Corinna’
No epicentro do caso está Corinna zu Sayn-Wittgenstein, uma das alegadas ex-amantes de Juan Carlos e que agora o acusa de a ter usado como ‘testa de ferro’ para fugir ao fisco espanhol. Corinna zu Sayn-Wittgenstein, uma empresária e consultora de 53 anos, acusa o Rei Emérito de ter posto em nome dela várias propriedades no estrangeiro, incluindo em Marrocos, e algumas contas na Suíça. Na altura, a consultora vivia no Mónaco – um paraíso fiscal, onde não há obrigatoriedade de declarar o património -, pelo que o Rei se aproveitou da residência da amante para se furtar aos impostos. Além de Corinna, Juan Carlos teria usado o mesmo esquema noutras contas, que aparecem com outros titulares, mas que, na prática, eram de Juan Carlos: o seu primo em segundo grau Álvaro de Orléans y Borbón foi um deles. «Eles colocaram algumas coisas em nome do seu primo, Álvaro de Orleans de Borbón, que também mora no Mónaco. As contas bancárias na Suíça foram colocadas em seu nome…. Agora eles estão a tentar fazer com que eu passe essas coisas [bens imobiliários] para Álvaro através de Dante [Canonica, um advogado suíço entretanto condenado por fraude fiscal]. Eles estão a fazer guerra comigo porque eu não quero cometer um crime», diz Corinna, citada pelo Ok Diário.
Além disso, a empresária – que se apresenta como princesa [ver caixa na página seguinte] contou que Juan Carlos tinha recebido dinheiro e outros bens para mediar o processo de construção de um TGV que liga Riade a Meca, na Arábia Saudita. A obra, que ainda não foi oficialmente inaugurada, foi adjudicada a doze empresas espanholas. A relação menos própria com o ‘mundo árabe’ não ficaria por aqui: segundo o El Español, o Rei Emérito terá ainda acordado com o Governo de Adolfo Suárez que uma percentagem de todas as transações petrolíferas de Espanha seria desviada para a conta da família real.
Corinna foi ‘apanhada’ a denunciar o monarca em Londres, em 2015, pelas escutas do antigo comissário José Manuel Villarejo, um ex-nome forte da Polícia espanhola. E, dizem alguns meios, terá sido este comissário – em prisão preventiva desde novembro de 2017, no âmbito do processo Tándem, por suspeitas de crimes graves de branqueamento de capitais e associação criminosa -, a dar as gravações aos meios de comunicação como forma de pressão. Mas também pode não ter sido Villarejo a fazê-lo: é que as escutas, encontradas em casa do antigo comissário juntamente com gravações de conversas com outras figuras públicas espanholas, podem ser também a prova de que Villarejo mantinha este hábito para depois subornar os interlocutores. Por isso, é ainda suspeito de usar indevidamente meios do Estado, para além de abusar da sua posição como comissário principal da Polícia espanhola e de por em causa investigações secretas. Outra tese em cima da mesa é a de que terá sido a própria Corinna a contratar Villarejo para depois chantagear a casa real.
Certo é que, no dia 10 de julho, o Ok Diario e o El Español, dois diários online, divulgaram as gravações de voz em que Corinna não só conta que era a ‘testa de ferro’ do Rei Emérito como revela que, a certa altura, Juan Carlos terá exigido que as contas e o património voltassem para seu nome. A aristocrata revelou nas gravações que tinha negado o pedido por ter medo de se tornar cúmplice de um crime de branqueamento – e disse estar a viver um verdadeiro «pesadelo».
Nas gravações, que na imprensa espanhola já ganharam a alcunha de ‘las cintas [fitas] de Corinna’, ouve-se ainda a voz de um terceiro elemento: nada mais anda menos do que Juan Villalonga, ex-presidente de uma das mais maiores empresas espanholas, a multinacional Telefónica.
A Audiência Nacional pediu, entretanto, as ‘cintas de Corinna’ para que fossem analisadas e, na sequência dos acontecimentos, 84 deputados assinaram um pedido para que fosse criada uma comissão de inquérito ao caso. O pedido foi aceite por Diego de Egea, o juiz que lidera um processo delicado que só agora está a começar.
Sem imunidade
Na quarta-feira, o El Mundo lembrava que Juan Carlos deixou de ter imunidade desde que abdicou do trono, a 2 de junho de 2014. O periódico espanhol, que cita fontes da Procuradoria-Geral do Estado, contou que Dolores Delgado consultou «informalmente» os serviços da Procuradoria sobre esta questão, para perceber se o antigo monarca poderia ser investigado no âmbito desde processo. Os Serviços Jurídicos do Estado confirmaram que, a partir dessa data, o Rei Emérito tem apenas imunidade nos casos em que representou oficialmente o Estado. O mesmo organismo assinala ainda que, segundo a lei orgânica do poder judicial, o Rei Emérito só poderá ser investigado pela ‘Sala de Lo Penal’ do Supremo Tribunal de Espanha.
No entanto, caso se provem que as irregularidades foram cometidas antes de 2 de junho, ou seja, durante o seu reinado, poderá Juan Carlos responder em tribunal?
Esta semana, o Parlamento espanhol já ouviu, numa sessão à porta fechada, o diretor do CNI (Centro Nacional de Inteligencia) – os serviços secretos espanhóis -, Félix Sanz Roldán. Nas gravações, Corinna chega até a dizer que Róldan a terá ameaçado para que não revelasse a sua relação com o monarca. O dirigente, que respondeu às questões da Comissão de Controlo dos Créditos Destinados a Gastos Reservados do Congresso dos Deputados – e que saberia das ‘cintas de Corinna’ – não convenceu o Podemos. Já o PP e o PSOE disseram-se satisfeitos com as explicações de Róldan. Pedro Sánchez tem-se mostrado cauteloso, já que tem entre mãos um caso capaz de provocar uma crise institucional com danos difíceis de prever.
‘Uma campanha de descrédito’
Corinna já reagiu às gravações, dizendo que estava a ser «alvo de uma campanha de descrédito com fins políticos». A empresária, que não nega, no entanto, que seja a sua voz nas gravações, conheceu Juan Carlos I em 2004, numa caçada no Botswana. Segundo a imprensa espanhola, a alemã manteve uma relação com o Rei Emérito entre 2006 e e 2013 e durante este período acompanhou-o frequentemente em viagens – alegadamente, como consultora.
O seu primeiro marido, Philip Adkins, também já veio a público afirmar que a ex-mulher apenas queria atenção e que esta era uma forma de voltar às páginas dos jornais, onde foi presença constante durante os anos em que foi amante do Rei. Adkins, que foi um dos participantes da caçada de elefante no Botswanna em 2012, surge agora como um defensor da instituição monárquica, descredibilizando Corinna, a quem classifica como uma «narcisista» que apenas procura exposição mediática. Os defensores da monarquia espanhola alinham pela mesma teoria, afirmando que as gravações não passam de uma vingança de uma ex-amante.