Phil Mendrix já estava doente, já assumira uma dolorosa quimioterapia na bem humorada e a participativa página de Facebook mas continuava a usar as redes sociais para contar ao mundo a paixão pelo instrumento maternal do rock, a guitarra. E o que de mais romântico havia na relação: concertos. Com os Ena Pá 2000 e os Irmãos Catita, os combos liderados por Manuel João Vieira que o deu a conhecer a novas gerações quando Filipe Mendes voltou do Brasil em meados dos anos 90. Mas antes da ‘Marilu’ e de ‘Conan, o Homem-Rã’ já este homem de cabeleira encaracolada atravessara a história do rock em Portugal. Ou, pelo menos, as suas fundações.
Filipe Mendes nasceu em Lisboa no ano de 1947 e aos 14, quando vivia em em Moçambique, recebeu da avó o presente de uma vida. A primeira de várias guitarras a que se haveria de agarrar como o último pedaço de terra no planeta. De barco, vão chegando discos de Elvis Presley, Little Richard e Chuck Berry, os ídolos rock da época, e o demónio vai tomando conta dos dedos.
Inspirado pelos Animals (a banda de ‘House Of The Rising Sun’), forma os Monstros, mais conhecidos quando se passam a apresentar como Chinchilas. O EP I’m a Believer parte de um decalque do clássico dos Monkeys mas junta-lhe três canções originais : ‘Crying’,‘Take That Train’ e ‘Marry Me’. Era normal na época as bandas portuguesas reproduzirem os êxitos anglo-saxónicos.
Participam em dois concursos de Ié-Ié mas a banda acaba quando Mendes tem de cumprir serviço militar – a banda ainda se há de reformar para o Vilar de Mouros 1971, o primeiro festival português de rock.
«Os amplificadores eram fortes, mas os gritos das miúdas eram mais fortes», recordou no podcast ‘A Beleza das Pequenas Coisas’. Sozinho, Filipe Mendes grava ‘Urso Ki’ no lado A, e ‘Ring Stone Eye’ no lado B de um single a solo.
A guitarra ganha espessura e o salto é do Ié-Ié para o hard rock dos Psico, banda do Porto reativada no pré-25 de Abril. O grupo grava o primeiro disco com Mendes mas sem a dupla António Garcez/Zé Castro que há de fundar os Arte & Ofício e os Roxigénio, um power trio com estes dois e os solos diabólicos de Phil Mendrix. A banda introduz uma diferença, face ao que era comum num tempo de nacionalizações pós-25 de Abril: o cantar em inglês. No ano de Ar de Rock de Rui Veloso, o primeiro LP do grupo é editado em contra-corrente. Os Roxigénio ainda vão a Vilar de Mouros, um reencontro para Filipe Mendes, mas a permanência em Portugal é curta. Muda-se então para Minas Gerais (Brasil) com a mulher. Não perde o contacto com a música e dá em concertos em casa para toda a aldeia ouvir, mas também é atração no Rock Pira, um festival de rock no interior do estado de Minas Gerais. E assim se passa uma década de isolamento consentido em que tudo está a mudar em Portugal. É a entrada na CEE, o rock e a música moderna, o crescimento da indústria discográfica e de concertos.
Mendes volta a Portugal em 1992 para ser professor de guitarra no Porto. Renascem os Roxigénio, convidados dos excêntricos Ena Pá 2000 para abrir diversos concertos. É aí que conhece Manuel João Vieira, pai do cognome Phil Mendrix por que há de ser conhecido até ao fim dos dias.
Passa a ser convidado permanente dos Ena Pá 2000 e Irmãos Catita, em concertos e discos. E, além do guitarrista virtuoso e do pai de cinco filhos, nasce o mito. Participa na banda sonora, e filme, de Bruno de Almeida, inspirado no antigo Cabaret Maxime, protagonizado por Michael Imperioli, que tinha Manuel João Vieira como sócio principal. Celebra 50 anos de carreira no então reaberto Ritz Clube com Carlos Mendes, Os Charruas, Camané,
Jorge Palma, Fernando Girão, os Chinchilas, Gimba e, claro, Manuel João Vieira. «Esta noite o Facebook vai ser substituido pelo ácido, os telemóveis vão dar lugar a flores, e as paranoias do dia a dia vão ser engolidas por um enorme arco-íris. Venham ao Ritz e entrem na trip», dizia o convite para o concerto. Podia ser uma súmula dos anos finais da vida de Mendrix.
Ainda recebe a Medalha de Honra da SPA no ano passado e, sobretudo, é o centro das atenções de um documentário de Paulo Abreu, desvendado no DocLisboa.
Dezenas de testemunhos na hora da morte elogiaram-lhe não só o talento mas também a humanidade. Atrás de uma guitarra com vida, estava um ser generoso e apaixonado.