No dia em que a capital acordou em sobressalto, tinham passado 232 anos da maior tragédia que destruiu Lisboa, o terramoto de 1755. E não foram poucas as pessoas e os jornais que no dia 25 de agosto de 1988, no pico de um verão quente, falaram do terramoto que matou largos milhares de lisboetas e que deixou quase toda a baixa da capital em cinzas e em escombros. Dois séculos depois, a cidade acordou novamente em pânico com o coração do Chiado a arder.
Trinta anos passaram entretanto e não são ainda conhecidas as causas do incêndio que foi detetado pelas 5 horas daquela madrugada de sexta-feira e que levou dias a ser extinto. Foram apontadas várias causas para o incêndio, sendo uma delas um curto-circuito numa das lojas do Grandella e chegou a haver a suspeita de fogo-posto. A PJ chegou mesmo a interrogar o proprietário dos armazéns Grandella, Manuel Martins Dias, e abriu inquérito para apurar a origem do incêndio, mas o processo acabou por ser arquivado em 1992.
O fumo começou a sair através de uma fenda de vidro de uma montra dos extintos armazéns Grandella. Em apenas cinco horas já estavam totalmente em cinzas o edíficio do Grandella e os antigos Armazéns do Chiado, os armazéns Eduardo Martins, a pastelaria Ferrari, a Casa Batalha, a Valentim de Carvalho – que perdeu um vasto arquivo musical e documentos (como por exemplo a partitura original do hino nacional) -, e várias lojas que ali existiam desde os séculos XVIII ao XIX.
No total, entre as ruas do Carmo, Nova do Almada, Crucifixo, Garrett, Calçada do Sacramento e Ouro, arderam 18 edifícios numa área equivalente a quase oito estádios de futebol.
O incêndio provocou dois mortos – um bombeiro e um morador de 70 anos – e dezenas de feridos. 300 pessoas ficaram desalojadas e outras duas mil pessoas perderam o posto de trabalho.
Mário Soares era, à data, o inquilino do Palácio de Belém e, de acordo com o Diário de Notícias, estava de férias em sua casa no Vau, em Portimão. Ao saber do incêndio, o Presidente da República correu para a capital e no mesmo dia, pelas 9h15, chegou à zona atingida pelo fogo. Acompanhado pelo então vice-primeiro-ministro, Eurico de Melo, percorreu as ruas em chamas e reuniu com as autoridades. Mais tarde, Soares falou aos jornalistas e classificou o incêndio como «catástrofe nacional», contou o extinto jornal Diário Popular. Vários jornais escreveram na altura que esta foi a maior tragédia em Lisboa, a seguir ao terramoto de 1 de novembro de 1755.
A imprensa apontou várias falhas no combate às chamas sendo que os bombeiros tiveram algumas dificuldades em chegar à zona depois de o presidente da Câmara de Lisboa, Nuno Krus Abecassis, ter decidido instalar bancos, floreiras e esplanadas nas artérias do Chiado.
Na memória de quem assistiu de perto ao «inferno» ficam as chamas que se viam a 15 quilómetros de distância e a cortina de fumo que se estendia por mais de 80 quilómetros, descreveu na altura o Diário Popular; a correria dos bombeiros e da polícia e as várias explosões de gás que se ouviam pelas ruas. A Praça do Comércio, onde circulava trânsito na altura, foi transformada em base provisória da Força Aérea que estacionou dois helicópteros equipados com macas para intervir caso fosse chamada para numa eventual evacuação do espaço ou no socorro a vítimas.
É todo este «pandemónio» e «inferno» que António Rodrigues, que trabalhava no histórico restaurante Palmeira, que funcionava na Rua do Crucifixo, recorda ao b,i.
O relato de quem lutou contra as chamas
Na altura, António Rodrigues tinha 48 anos e era o responsável por abrir de manhã as portas do restaurante que escapou por uma unha às chamas.
E foi ele que lutou durante horas contra o fogo estando dentro do restaurante, enquanto as chamas consumiam metade do prédio.
Foi quando chegou à estação do Rossio, pelas 7 horas, que foi surpreendido com o «aparato» do incêndio e «muitas pessoas nas ruas». António Rodrigues vinha do Cacém, onde vivia, e por essa hora «já estava tudo a arder e não deixavam passar ninguém das zonas do Rossio, Ouro e Sapateiros», recorda.
Àquela hora não estava ninguém no Palmeira e o patrão do sr. Rodrigues – como era conhecido pelos antigos clientes do Palmeira, que foi encerrado em 2015 – estava em S. Pedro do Sul, a sua terra natal.
Depois de alguma insistência, António Rodrigues conseguiu aproximar-se do restaurante e ficou a poucos metros da porta. «O prédio ainda não estava a arder e queria entrar, mas não me deixaram», relata o ex-funcionário. Até que «uma senhora que morava naquela rua lembrou-me de que havia gás» dentro do Palmeira. «Disse aos polícias e bombeiros que tinha quatro botijas de 45 quilos dentro do restaurante» e foi então que fizeram «uma corrida para tirar as botijas e levá-las para a Rua da Conceição (final da Rua do Crucifixo)».
Com a porta já aberta, António Rodrigues aproveitou para ficar dentro do edifício e começou a levar caixas registadoras e documentos para uma divisão do restaurante mais interior, que ficava debaixo de umas arcadas. «Pensei que o incêndio não ia chegar lá dentro», mas foi então que «o prédio começou a arder», recorda emocionado.
António conta que esteve «sempre em contacto com o patrão pelo telefone», mas que quando o incêndio chegou ao prédio «já não conseguia falar». Disse à mulher do dono que a situação estava «muito má e que ia arder tudo» e «pedi-lhe que rezasse» porque «só um milagre iria salvar aquilo», conta ao b,i. com a voz embargada. «Foi uma coisa que me marcou muito, muito, muito».«Andei debaixo de fogo umas horas, era já meio da tarde quando parou», diz. Foi quando saiu de dentro do Palmeira que viu que o lado direito do prédio tinha ardido «do teto ao chão» e que do lado do restaurante «não ardeu nada». Naquela rua, onde na altura os prédios eram contínuos (não existia a escadaria que hoje os separa os Armazéns do Chiado), o fogo parou ali.
«Ainda hoje não sei se foi um milagre, mas o que travou muito o incêndio foi um carro de bombeiros que veio do aeroporto e que, desde o cimo da rua, apontou para lá um canhão de água com muita força», acredita o ex-funcionário do Palmeira.
A tarde ia a meio quando a situação parou. «Não me pergunte horas», diz o sr Rodrigues que depois do sufoco que ali passou continuou sem sair do restaurante. «Nem eu e nem os bombeiros», recorda, contando que foi dando cervejas e águas a quem ali esteve a combater as chamas; «era o que se chama o bar aberto».
Entretanto, o seu patrão rumou a Lisboa e só conseguiu entrar no Palmeira já perto da meia noite. «Nesse dia não fui a casa», continua o sr. Rodrigues, que só voltou ao Cacém dois dias depois (no domingo) «para comer qualquer coisa e para tomar um duche, porque aquilo estava um pandemónio de água por todo o lado».
Apesar de não ter ardido, o Palmeira ainda sofreu alguns danos por causa da água e esteve encerrado durante três meses, tendo reaberto no mesmo sítio. Da Câmara de Lisboa «não chegou um tostão» para ajudar nas obras de reabilitação do Palmeira, que tinha à data 20 empregados. «Houve muitas promessas» da autarquia que «não deram em nada», lamenta António Rodrigues, recordando que o único apoio da câmara foi a instalação de um teto falso em chapa para reter as águas durante as obras de recuperação do edifício.
A mesma (pouca) sorte não tiveram as dezenas de lojas históricas que ali funcionaram e que desapareceram com as chamas. Muitas não foram recuperadas, tendo desaparecido património histórico com valores por calcular.
Um dia depois do incêndio, o Correio da Manhã apresentou alguns cálculos e , entre os valores «possíveis de estimar», o prejuízo rondava entre os 30 a 40 milhões de escudos (cerca de 200 milhões de euros), sendo que os trabalhos de rescaldo se arrastaram até o dia 5 de setembro, dez dias depois do fogo.
Património perdido
O Chiado é a zona nobre da capital e a área mais cara do país. Não é de estranhar, por isso, que ali esteja concentrado o maior número de escritórios e de vários tipos de lojas, que em grande parte são históricas. No entanto, várias foram devoradas pelo incêndio.
Em 2013, quando foram assinalados os 25 anos do incêndio, quatro fotojornalistas reuniram 120 imagens que registaram através da sua lente durante os dias daquela que é considerada a maior tragédia de Lisboa do século XX. As imagens captadas por Alfredo Cunha, Fernando Ricardo, José Carlos Pratas e Rui Ochoa, estão publicadas na obra O Grande Incêndio do Chiado, da Tinta da China. Um documento que guarda a memória e o registo do rasto de destruição do vasto património irrecuperável.
É também nesta livro – que conta com a colaboração do primeiro-ministro António Costa, à data da publicação presidente da Câmara de Lisboa – que o jornalista e investigador António Valdemar descreve o percurso de algumas das lojas históricas que desapareceram.
Além dos edifícios icónicos dos armazéns Grandella e dos antigos armazéns do Chiado, arderam ainda os armazéns Eduardo Martins. Estas eram as lojas que transportavam para Lisboa a moda parisiense.
Mas, na Rua Nova do Almada, as chamas também destruíram totalmente a Casa Batalha, a mais antiga loja de todo o país, que abriu portas em 1635, no final da ocupação filipina e que era fornecedora da Casa Real. Ali eram vendidas missangas, lantejoulas, vidrilhos e outros artigos de bijuteria e as montras ostentavam pergaminhos e cruzes de madeira com embutidos que navegaram nas naus que rumavam à Índia.
Ardeu ainda totalmente a ‘Maison Ferrari’ ou a Pastelaria Ferrari, que funcionava desde 1846 nos números 91 e 93 da Rua Nova do Almada. Foi na cave da Ferrari que, durante o período do salazarismo, foi escondido o espólio documental da maçonaria. O gerente da pastelaria, Alfredo Mourão, era também o tesoureiro do Grande Oriente Lusitano e amigo do então Presidente da República, o general Carmona, também maçon. O fogo consumiu, ainda no escritório da Ferrari, textos originais, horóscopos, fotografias, livros de Fernando Pessoa e registos da passagem do escritor pelo Martinho da Arcada – é que Alfredo Mourão era também gerente do histórico café e restaurante frequentado pelos escritores e artistas, e que ainda funciona na Praça do Comércio.
Perdeu-se ainda um vasto arquivo musical e documental da Valentim de Carvalho, conhecida na altura como Salão Neupart, que funcionava desde 14 de fevereiro de 1824 na Rua Nova do Almada. A partitura original do hino nacional ‘A Portuguesa’, com o manuscrito de Alfreido Keil ficou reduzida a cinzas. O mesmo aconteceu com desenhos de Almada Negreiros para capas de discos e com cartas e postais de Amália Rodrigues.
Desapareceu também a Perfumaria da Moda, que serviu de cenário ao filme O Pai Tirano. E ardeu ainda uma das primeiras mercearias da Jerónimo Martins, a Martins & Costa, onde eram vendidos produtos gourmet como carne de caça, ostras, queijos raros, especiarias, frutas exóticas ou vinhos e champagnes franceses. Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, era cliente assíduo da mercearia gourmet.
Foram necessários largos anos para que o Chiado se reerguesse e recuperasse o que foi possível do rasto de destruição.
O único edifício icónico que foi recuperado é onde hoje funcionam os atuais Armazéns do Chiado. À data do incêndio, as lojas dos armazéns funcionavam apenas no piso onde hoje está instalada a Fnac e todo o resto do edifício era ocupado pelos armazéns Grandella, que ocupavam ainda grande parte da Rua do Carmo, onde hoje funcionam lojas. Dos Armazéns Grandella, resta apenas numa das paredes da Rua do Carmo, onde hoje funcionam várias lojas, a divisa: «Sempre por bom caminho e segue».
Já o edifício dos Armazéns do Chiado, que conta com oito andares, projetado pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira (em 1991), foi acompanhado por uma transformação profunda daquelas ruas e esteve envolvido em vários polémicas e processos contenciosos. Só onze anos depois do incêndio, em 1999, o edifício foi inaugurado.
O b,i. contactou a Câmara de Lisboa para saber se vão decorrer algumas iniciativas para assinalar os 30 anos do incêndio que abalou a capital, mas não obteve resposta.