Era um dia histórico para o ténis japonês, mas a inédita vitória de uma nipónica na final de um Grand Slam acabou por ficar em segundo plano. O motivo? A ‘birra’ de Serena Williams devido às decisões do árbitro de cadeira, o português Carlos Ramos. O encontro ganho por Naomi Osaka, de apenas 20 anos, em dois sets (6-2 e 6-4) ficou marcado pelas decisões do juiz luso que enfureceram a multi-campeã norte-americana, numa polémica que ainda continua a fazer correr rios de tinta na imprensa internacional.
A decisão de Carlos Ramos em aplicar uma penalização a Serena por ‘coaching’, ou seja, receber indicações do treinador no decorrer do encontro, levou a atleta de 36 anos a um verdadeiro ataque de nervos. Serena protestou de forma efusiva – «Eu tenho uma filha e não sou batoteira. Prefiro perder a fazer batota» -, e pouco depois partiu uma raquete, o que lhe valeu nova advertência e mais um ponto de penalização. Aí, explodiu por completo, atirando-se ao árbitro português – «Devia pedir-me desculpa. É mentiroso e um ladrão. Jamais recebi ‘coaching’ na minha vida» – e acusando-o inclusivamente de estar a agir dessa forma apenas pelo facto de ela ser mulher.
Os abusos na linguagem acabaram por redundar em nova advertência e jogo de penalização, algo inédito na história das finais de Grand Slam. Serena terminou a partida lavada em lágrimas e Carlos Ramos saiu do recinto antes da entrega dos prémios, debaixo de um enorme coro de assobios e com escolta da segurança. Depois do encontro, o treinador da norte-americana, o francês Patrick Mouratoglou, acabou por reconhecer ter dado instruções a Serena, embora garantindo que a atleta nem se apercebeu dos gestos.
A favor e contra
Como seria de esperar, o tema ganhou enorme repercussão a nível internacional – em causa estava provavelmente a melhor tenista feminina de sempre. As opiniões dividiram-se, com vários organismos a atacar Carlos Ramos e outros a criticar a conduta de Serena. Steve Simon, diretor da WTA (associação de ténis feminino), considerou que o incidente «levantou a questão de diferentes padrões serem aplicados às mulheres e aos homens no que respeita à arbitragem dos encontros», pedindo que «todos os jogadores sejam tratados de forma igual» e considerando que esse não foi o caso.
Uma posição corroborada por Katrina Adams, presidente da Federação norte-americana de ténis. «Tem de haver consistência, porque vemos os homens fazer isto a toda a hora e não são penalizados. Talvez a Serena tenha ido um pouco longe de mais, mas dar-lhe um jogo de penalidade por lhe chamar ladrão? Eles já foram chamados de muito pior. Ele devia ter tido bom senso e avisá-la: ‘Serena, se continuares assim, vou ter de agir.’», realçou a antiga tenista.
A Federação Internacional de Ténis (ITF), porém, não foi da mesma opinião. O organismo que rege a modalidade a nível mundial considerou que Carlos Ramos «atuou com profissionalismo e integridade» e lembrou que as decisões do árbitro português foram validadas com a multa atribuída pela organização do US Open a Serena Williams, no valor de 17 mil dólares (cerca de 14700 euros). «Carlos Ramos é um dos árbitros mais experientes e respeitados do ténis mundial. É compreensível que um incidente desta magnitude suscite debate, mas ao mesmo tempo é importante lembrar que o Sr. Carlos Ramos cumpriu seu papel de árbitro na aplicação das regras e atuou em todos os momentos com profissionalismo e integridade», escreveu a ITF em comunicado.
Mike Morrisey, antigo árbitro e ex-chefe da arbitragem na ITF, também frisou a certeza de que o juiz português agiu de forma correta: «O Carlos tem sido um dos melhores árbitros do mundo desde meados dos anos 90 e tem a reputação de ser rígido mas justo a lidar com os jogadores. A acusação de ‘ladrão’ é uma coisa que nenhum árbitro deve ignorar.»
Mão pesada para todos
De facto, Carlos Ramos é um dos árbitros mais antigos e cotados no circuito mundial. Nascido em Moçambique há 47 anos, radicou-se em Lyon na década de 90, tendo ainda lá a residência oficial, ao lado da mulher e dois filhos. Adquiriu o primeiro nível (distintivo branco) da ITF em 1991, começou a dirigir jogos internacionais pouco depois e em 1994 obteve o Gold Badge Chair Umpire, o nível mais alto da arbitragem – na altura, apenas detido por 25 árbitros em todo o mundo.
Em 2004, passou a integrar o restrito grupo de árbitros ITF/Grand Slam e desde então já dirigiu as finais de todos os grandes torneios de ténis do mundo – incluindo os Jogos Olímpicos, em 2012. Foi mesmo o primeiro árbitro a dirigir encontros em todos os quatro Grand Slam: Open da Austrália, Roland Garros, Wimbledon e Open dos Estados Unidos). Curiosamente, tinha como ídolo na infância e adolescência o norte-americano John McEnroe, um tenista genial mas totalmente irascível e intratável na relação… com os árbitros.
Ao longo dos últimos anos, foi colecionando ‘despiques’ com as maiores estrelas do ténis, mostrando sempre total inflexibilidade em relação a condutas que considera menos próprias por parte dos atletas. E, ao contrário do que Serena referiu, tal já aconteceu em diversas ocasiões em encontros do circuito masculino. Num perfil sobre o juiz luso publicado na passada semana, o New York Times referia que Carlos Ramos «tem vindo há algum tempo a seguir à risca as regras com as maiores estrelas do ténis, masculinas ou femininas», podia ler-se no artigo assinado pelo jornalista Christopher Clarey, que conhece Ramos desde que este se tornou profissional.
Ainda em 2017, em Roland Garros, advertiu Rafael Nadal pela sua demora a servir, com o espanhol a acusar depois o juiz português de o ‘perseguir’ em busca de qualquer erro. No mesmo recinto – onde em 2016 havia já advertido Venus Williams, irmã de Serena, igualmente por receber sinais do seu treinador -, o sérvio Novak Dkojovic foi igualmente advertido por gastar demasiado tempo entre as jogadas, sendo punido depois de reclamar na sua língua materna e simular o gesto de atirar uma bola. «Que foi? O que é que eu disse? Não me diga que sabe sérvio», disparou então Djoko, que voltaria a ter problemas com Carlos Ramos já este ano em Wimbledon.
Também Andy Murray entrou em choque com o árbitro português nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016 – onde até acabaria por ganhar a medalha de ouro. Num encontro com o japonês Kei Nishikori, o britânico terá chamado «estúpido» a Carlos Ramos; no fim do jogo, revelou ter dito «arbitragem estúpida» e acusou o árbitro de querer «ser a estrela do jogo». No início desse ano, no Open da Austrália, ao ser chamado à atenção pelo juiz luso por ter gritado com um apanha-bolas, Nick Kyrgios atirou um «A sério? Estou a infringir que regras? Isto é uma m…».
A mão pesada de Carlos Ramos, de resto, também já se manifestou em Portugal. No Estoril Open de 2017, o francês Richard Gasquet perdeu um ponto por receber instruções do treinador numa partida com o sul-africano Kevin Anderson e não escondeu o desapontamento. «O meu treinador não disse nada, para mim isto é desrespeitoso. Nunca vi um árbitro de cadeira assim. Estou muito triste, perdeu o meu respeito para toda a vida», disse então o vencedor do Estoril Open de 2015.
Todos com Ramos
Em 2010, em entrevista ao Expresso, Carlos Ramos explicava como se preparava para os grandes jogos. «Tento antecipar que tipo de encontro vou arbitrar, que jogadores são e se tenho antecedentes com eles. A melhor maneira é adaptar-me ao jogo e encaixar-me como num puzzle. Por isso, é sempre diferente do que uma primeira ronda, o que não quer dizer que seja menos prestigiante. Não entro em estágio como alguns colegas meus, nem tenho superstições ou rotinas», contava, dividindo os jogadores entre «exigentes» e «difíceis»: «Há o exigente, que quanto mais mediático, mais exigente é. E há o difícil porque não é razoável. Não que seja estúpido, mas lida mal com a autoridade e o resultado de algumas situações depende mais dele do que de nós.» Na mesma ocasião, traçava ainda uma diferença entre géneros: «Se um homem acha que erraste, pensa que és mau árbitro; se for uma mulher, acha que temos algo contra ela. Elas reagem de forma mais pessoal.»
Após a final de domingo, Carlos Ramos procurou resguardar-se e fugir do foco mediático. Ainda assim, acabou por abrir uma exceção na passada quarta-feira e conversou brevemente com Miguel Seabra, seu amigo de longa data e jornalista do Expresso. «Estou bem, tendo em conta as circunstâncias. É uma situação chata, mas arbitragem ‘à la carte’ não existe. Não te preocupes comigo», pode ler-se no texto assinado por Miguel Seabra, onde este revela que o árbitro português «recebeu centenas de mensagens de apoio de família, colegas, jogadores e ex-jogadores» e «só lê artigos equilibrados sobre o tema, criteriosamente escolhidos e enviados por amigos».
Na última quarta-feira, de resto, a ideia de que Carlos Ramos realizou uma boa arbitragem na final do US Open foi confirmada com a notícia de que o árbitro português foi escalado para dirigir a meia-final da Taça Davis entre a Croácia e os Estados Unidos.
A seu lado parece estar também a maioria dos seus colegas de profissão. Segundo avançava na última terça-feira o The Times, os principais árbitros do ténis mundial estarão a ponderar a hipótese de boicotar os encontros de Serena Williams, em protesto contra o tratamento dado ao caso de Carlos Ramos por parte do WTA e da USTA, não tendo ficado igualmente agradados com a demora de uma resposta por parte da ITF (cerca de 48 horas). De acordo com o The Guardian, os juízes ponderam avançar para a criação de uma espécie de sindicato que os possa defender em situações semelhantes. «Há muito descontentamento por parte dos árbitros, pois todos pensam como seria se lhes acontecesse a eles. Sentem que Carlos Ramos foi deixado sozinho nesta situação e querem arranjar uma plataforma de defesa», confessou um experiente juiz ao reputado periódico britânico. Richard Ings, ex-árbitro que tem sido uma das vozes mais ativas na defesa de Ramos, assegurou mesmo que a comunidade da arbitragem da modalidade está toda ao lado do árbitro português.
Contra a ditadura do politicamente correto
O último capítulo da polémica chegou… da Austrália. E tudo devido a um cartoon, da autoria de Mark Knight, publicado no Herald Sun e onde se podia ver a caricatura de Serena Williams surge enfurecida a saltar sobre uma raquete em pedaços e com uma chupeta no chão, enquanto Carlos Ramos pergunta a Naomi Osaka «Podes simplesmente deixá-la ganhar?».
O desenho, rapidamente viralizado nas redes sociais, gerou grande controvérsia – como quase todos os temas fraturantes hoje em dia -, com acusações de sexismo e racismo dirigidas ao desenhador. Na quarta-feira, em solidariedade para com Knight, o jornal australiano resolveu voltar a publicar o cartoon… mas na capa, acompanhado de outras caricaturas de figuras mundiais, como Donald Trump ou Kim Jong-un. Em editorial, o Herald Sun defende o desenhador e rejeita por completo as acusações. «O mundo endoideceu oficialmente quando um cartoonista de renome é condenado pelas hordas das redes sociais por retratar uma estrela do desporto a fazer uma birra pouco edificante. Mark Knight ridiculariza a estrela pelo comportamento que tem, como já fez com outras personalidades poderosas. Independentemente da raça ou sexo, eles são ridicularizados pelo seu comportamento. Dizer que o desenho é racista é uma tentativa de derrotar os cartoons e a sátira com uma barreira de politicamente correto. Há uma necessidade válida e urgente de continuar a marcha rumo à verdadeira igualdade racial e sexual em todas as esferas da vida, mas os que identificam racismo no cartoon de Knight – onde ele não existe – perdem completamente o sentido do desenho», pode ler-se no texto.
Por baixo da imagem, mais uma farpa aos críticos – «Se os censores de Mark Knight tiverem aquilo que querem no que diz respeito ao cartoon de Serena Williams, a nossa vida politicamente correta vai ser muito aborrecida de facto» – e ainda a inscrição «vetado: cabelo e ancas muito grandes, demasiado zangada». Knight, por seu lado, garantiu que o cartoon tinha apenas o objetivo de representar o «comportamento desagradável» de Serena; entretanto, o desenhador acabou por abandonar as redes sociais.