A vontade do Governo em atrair médicos para zonas carenciadas não é nova e vem já de executivos anteriores, mas a verdade é que o programa de incentivos à fixação de médicos em zonas carenciadas não tem conseguido ver o seu objetivo cumprido como a tutela desejava. E se os incentivos não convencem a maioria dos médicos, que os consideram insuficientes, entre os clínicos que aderem ao programa há quem se queixe de não ter sequer acesso a regalias. É o caso de Joana (nome fictício), que denuncia ao SOL que, depois de estar já a exercer numa zona carenciada do Alentejo, continua sem saber se vai ou não receber os incentivos previstos na lei.
A médica de família trabalhava num centro de saúde do concelho de Sintra e quis mudar de vida. «Decidi ir trabalhar para o litoral alentejano porque quis experimentar a vivência de um sítio mais calmo e ter mais tranquilidade e qualidade de vida», conta ao SOL. Fez o pedido de mobilidade a 30 de dezembro de 2016, mas tudo foi mais difícil do que previa. «Andei embrulhada durante quase um ano com o processo, fui inúmeras vezes à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale Do Tejo (ARS)», disse, acrescentando que só em setembro de 2017 percebeu que era no local para onde se queria mudar que tinha de tratar de tudo. «Quando falei com a advogada do Hospital da área para onde queria ir, ela disse-me que tinha de ser tudo iniciado lá», recorda.
Recomeçou então o processo do zero, na esperança de que tudo se resolvesse, mas não foi isso que aconteceu. O processo foi autorizado pouco depois, no dia 18 de dezembro, mas a mudança voltou a ficar em suspenso por mais uns meses. O que estava em causa «era um regime de troca com um colega que entretanto desistiu. Por isso, ficou tudo em águas de bacalhau até abril ou maio. Só nessa altura foi autorizada a minha ida para o litoral alentejano, porque apesar de ser suposto ser uma troca e de o meu colega ter desistido, a minha mobilidade já estava autorizada».
Conseguida a autorização, Joana iniciou funções a 1 de junho. Contudo, começou a aperceber-se de que nem tudo iria ser como julgava. «No pedido de mobilidade que fiz, pedi mobilidade ao abrigo do decreto de lei dos incentivos, que dá uma série de regalias e compensações. Mas entretanto, disseram-me que, em relação aos incentivos, o meu processo – que não me deixaram consultar durante uma série de tempo – é omisso e não está escrito se tenho direito aos incentivos ou não», denuncia a médica especialista, que se queixa de falta de transparência por parte da tutela.
O diploma ao qual Joana se refere é o decreto-lei n.º 15/2017, que estabelece as condições da mobilidade de médicos para zonas carenciadas. Entre os benefícios previstos está um ordenado superior em 40%, mais dois dias de férias.
Neste momento, o processo arrasta-se na Administração Central do Sistema de Saúde, em Lisboa, e Joana está a suportar os custos associados à nova vida sem qualquer tipo de incentivos. Por isso, depois dos obstáculos anteriores enfrenta agora mais um: «Como estou a fazer uma formação aos fins de semana em Lisboa, tenho de ter casa lá também. Estou a pagar duas casas de 500 euros no mínimo, e portanto não vou conseguir manter-me muito mais tempo aqui. A minha vida aqui só era possível com os incentivos», lamenta.
Vagas por preencher
Em julho deste ano, a tutela anunciou um concurso para médicos recém-especialistas – o maior dos últimos anos, com 1234 vagas. No litoral alentejano, abriram cinco vagas, com direito a incentivos: uma em Grândola, duas em Sines e duas em Odemira. Apenas a de Grândola foi preenchida, mas isso não significou boas notícias para Joana. «Como a zona onde estou não foi abrangida, eles dizem que eu não devo ter direito aos incentivos», conclui. A trabalhar no litoral alentejano há mais de dois meses, continua sem ter uma resolução à vista e acredita que nada vai receber.
Ordem dos Médicos critica incentivos
A Ordem dos Médicos não está satisfeita com o programa de incentivos para os médicos se fixarem em zonas carenciadas. No início de 2018, o bastonário Miguel Guimarães fez um balanço do decreto que estabelecia as condições da mobilidade de médicos para zonas carenciadas e lamentava o facto de o Governo ter decidido limitar o número de vagas no programa a 150. «Os médicos que faltam no SNS não são 100 nem 150, são entre quatro e cinco mil médicos, no mínimo», disse na altura à Rádio Renascença. Referindo-se aos incentivos, Guimarães comparou o caso português com outro, assinalando que «em França, quando fizeram um plano destes, ofereciam entre 15 e 20 dias a mais». As condições de trabalho são também uma preocupação para a Ordem, que defende que é preciso que os médicos tenham «acesso aos equipamentos, aos dispositivos médicos, aos materiais que são necessários para executar determinado tipo de técnicas, como cirurgias e outro tipo de atos médicos, o que muitas vezes não acontece».