Há bandas da geração dos U2 que ficaram de um homem só como os Cure de Robert Smith. Outras perderam membros vitais, como os Depeche Mode que, sem Alan Wilder e Vince Clarke, ficaram reduzidos ao núcleo formado por Dave Gahan, Martin Gore e Andrew Fletcher. Ou os New Order, em guerra com o mau-feitio do baixista Peter Hook, responsável pelo cinzento a traço grosso dos Joy Division e da era-pós Ian Curtis. A maioria ficou pelo caminho, até os que sobreviveram até à era dos estádios, como os R.E.M. E quase todos acabaram por ceder à tentação de voltar, em digressão ou disco, ou ambos. Dos grandes os pós-punk, só os Talking Heads não foram engolidos pelo mercado da saudade.
E depois há os U2. Outsiders no início dos anos 80. Menos populares do que os Echo & The Bunnymen ou Stranglers no Vilar de Mouros 1982. A maior banda do planeta desde a década de 90 quando impuseram uma ideia total de espetáculo, em que música e vídeo são um só. O sound & vision de David Bowie, um dos mestres , levado à letra.
De há 40 anos para cá, a vida dos U2 é uma longa e infinita estrada. Quase sexagenários, Bono e Adam Clayton nasceram em 1960. The Edge e Larry Mullen Jr. em 1961. Os quatro conheceram-se na escola quando o baterista publicou um anúncio para formar uma banda. Recebeu seis respostas. De Paul Hewson (Bono), Clayton, Dave Evans (The Edge), o irmão mais velho Dik Evans, e de dois amigos: Ivan McCormick e Peter Martin. Nos primeiros dez minutos de vida, os U2 foram a Larry Mullen Jr. Band. Depois, Bono tomou conta das operações e assumiu a liderança democrática do grupo. Até hoje. Martin não sabia tocar e McCormick acabou por ser afastado ao fim de poucas semanas de ensaios.
Começaram por se chamar Feedback e fazer versões. Ouviram a primeira geração de bandas punk inglesas. Sex Pistols e Clash mas também Buzzcocks e The Jam. Com duas letrinhas apenas e já sem o irmão de The Edge na segunda guitarra, passaram a ser como os conhecemos até hoje. Na sociedade ocidental nervosa e impaciente, casamentos tão duradouros estão em vias de extinção. Este tem 42 anos de amizade ao serviço da música e também de regras muito claras.
Muitas bandas acabam ou têm problemas devido à distribuição dos direitos, os chamados royalties. No caso dos U2, os rendimentos astronómicos são divididos em quatro partes iguais. Um mandamento tácito e sacrossanto desde 1978, quando Paul McGuinness, o manager até 2013, se tornou o quinto elemento do grupo. Ao atingir a bonita idade de 64 anos, decidiu retirar-se. Foi substituído no cargo por Guy Oseary, também conhecido por ser manager e braço direito de Madonna.
Nem a conta bancária, nem a fama ou os egos destruíram a ligação entre os quatro U2. De resto, as vidas privadas sempre foram isso mesmo e quando expostas, foi por vontade própria. ‘The Sweetest Thing’, um lado B de ‘Where The Streets Have No Name’, ascendeu a single onze anos depois, como pedido de desculpa de Bono à mulher Ali Hewson por se ter esquecido do aniversário durante as gravações de The Joshua Tree em 1987.
O respeito mútuo ajuda a explicar a longevidade. A ideia comum de desafio e reinvenção também. Baralhar e voltar a dar é exceção e não regra na história dos U2. No ano passado, a digressão comemorativa do 30.º aniversário do clássico The Joshua Tree foi um intervalo na fome de novo. Elevar a fasquia do álbum seguinte sempre foi uma ambição natural e o parto de revoluções internas.
Na ressaca do triunfo global de The Joshua Tree, a secção rítmica formada por Adam Clayton (baixo) e Larry Mullen Jr. (bateria) defendia a opção conservadora de persistir num som mais clássico mas, atentos às novas tendências da música de dança, como a explosão do acid house , Bono e The Edge defendiam a mudança. ‘Night & Day’, o tributo a Cole Porter da coleção Red + Hot, foi a experiência laboratorial necessária para fazer avançar as máquinas. O díptico Achtung Baby e Zooropa não só empurrou os U2 para uma nova dimensão, como ainda hoje serve de barómetro, de reinvenção – acontecera quase em paralelo com os Primal Scream em Screamadelica (1991) e posteriormente com os Radiohead em Ok Computer (1997), os Arcade Fire em Reflektor (2013) e Kanye West em Yeezus do mesmo ano, sem esquecer o grande mestre da encenação David Bowie, capaz de matar e inventar personagens como Ziggy Stardust ou Thin White Duke
Na primeira visita a Portugal em 1982, os U2 tinham urgência de chamar a atenção do mundo. Nas digressões ZooTV e PopMart, que visitaram Alvalade em 1993 e 1997, respetivamente, o mundo já escutava os U2 com toda a atenção mas em vez de jogarem pelo seguro, a emboscada vanguardista pela linha da frente da cultura visual e musical foi como uma linha de bingo. Não houve outra banda tão importante na década de 90, capaz de catalisar mediatismo e público enquanto criava uma agenda própria.
Os dois lados do muro
Berlim é uma cidade importante para os U2. Em outubro de 1990, menos de um ano depois da queda do muro, ali decidiram gravar Achtung Baby, sucessor de The Joshua Tree (1987) e também de Rattle and Hum (1988), coleção de gravações ao vivo, versões e inéditos como Desire e Angel of Harlem. A escolha não foi aleatória. Politicamente, simbolizava a reunificação alemã e uma Europa mais unida. Culturalmente, era a cidade da trilogia dourada de David Bowie – Low, Lodger e Heroes, gravados com Brian Eno – o produtor do álbum, com Daniel Lanois – no final dos anos 70.
Os U2 perseguiam o conflito para agitar ideias e o conflito abraçou os U2. Por isso, se escutam canções tão díspares como as arrojadas ‘Even Better Than The Real Thing’ ou ‘The Fly’, e ‘One’, alienígena balada num grupo de canções que vê casa em planetas desconhecidos. O parto foi demorado e pouco pacífico mas a experiência não podia ter sido mais bem sucedida: Achtung Baby e Zooropa são clássicos na discografia dos U2 e álbuns de referência na década de 90.
No princípio do mês, Bono perdeu a voz na segunda noite em Berlim da Experience + Innocence Tour que amanhã e depois esgotará a Altice Arena – a quinta visita dos U2 a Portugal é uma estreia em sala. A resiliência do grupo voltou a ser testada. Perder a voz é um temor capaz de tirar o sono a qualquer cantor. Há três anos, Adele ficou em pânico quando descobriu um problema irreparável nas cordas vocais. Durante seis meses, teve de deixar a voz em repouso.
Uma semana após a lesão, os U2 voltaram em força e sem sinais de abrandamento. Em Colónia, não se notaram as mazelas nem o passar do tempo. Numa produção dividida em dois por um ecrã gigante, e um palco com 30 metros de comprimento e 8,5 de altura, não faltaram as mensagens anti-Trump. Nem um punhado de canções recentes – a maioria estranhas a quem aguarda cinco horas ou numa fila ou se senta ao teclado com os dedos no gatilho para obter ingresso através das bilheteiras online. E clássicos, como não poderiam faltar, de ‘Sunday Bloody Sunday’ a ‘Pride (In The Name Of Love)’, usado pela banda como um cântico pró-LGBT, ‘New Year’s Day’ e ‘One’, já no encore.
De noite para noite, os alinhamentos sofrem pequenas mudanças mas o esqueleto dos concertos será este. Há quatro anos, Bono sofreu um grave acidente enquanto pedalava no Central Park de Nova Iorque e correu sérios riscos de não poder voltar a tocar guitarra. A cirurgia demorou cinco horas e exigiu um período de convalescença de seis meses. Isto num momento chave, quando de repente o mundo se virou contra os U2 devido à operação conjunta com a Apple que depositou na conta dos utilizadores do iTunes o álbum Songs of Innocence. A Internet é um ecossistema muito particular construída sobre a liberdade e rejeitou a escolha imposta pela administração de Tim Cook.
Apesar de os números não o expressarem – perto de cem milhões de downloads do álbum -, gerou-se uma onda negativa inédita até então na história dos U2. E quando o complementar Songs of Experience saiu no primeiro dia de dezembro do ano passado, chegou com a certeza de que, apesar da participação simbólica de Kendrick Lamar, já não teria o poder de mudar o rumo dos acontecimentos através das canções.
Nada que tenha interferido no balanço e contas. Em 2017, foram a banda mais lucrativa nos EUA graças à rota nostálgica de The Joshua Tree. De ano para ano, estão no topo ou entre os primeiros lugares das digressões que mais dinheiro geram. E ainda que já não consigam competir com Drake ou Beyoncé entre os mais ouvidos em streaming, nem gerem singles universais, como os U2 escreveram até ‘Vertigo’ (2004), as cidades ainda param para os ver. Em Lisboa, onde não dão um concerto desde 2005, a espera por uma grande produção com LEDs e realidade aumentada, está quase a terminar.
Contava Bono que Songs of Experience fora, em parte, inspirado por uma experiência terminal não descriminada. «Muitos de nós temos um problema com a mortalidade. Foi uma experiência impressionante», escreveu nas notas do disco. Mais do que nunca, a resistência dos U2 é posta à prova mas se o mundo parasse continuavam a ser um grupo de quatro amigos.