Só em 2020, a Câmara de Flint deverá ter terminado de substituir todos os canos de chumbo do seu sistema de distribuição de água e os cerca de 100 mil habitantes da cidade poderão voltar a fazer algo comum e que já não conseguem realizar desde 2014: beber água da torneira. Só nessa altura o pesadelo da contaminação com chumbo da água pública terá terminado.
Emily Sioma aproveitou o seu discurso no concurso de Miss América de domingo passado para lembrar a questão: «Do estado com 84% da água potável dos Estados Unidos, mas nenhuma para os seus residentes beberem, sou Miss Michigan, Emily Sioma». Com essa pequena introdução, a licenciada em Estudos Femininos pela Universidade de Michigan não conseguiu vencer o concurso de beleza – que este ano não incluiu o desfile de fato de banho e foi ganho pela Miss Nova Iorque -, mas tornou-se num fenómeno de internet, com o vídeo do pequeno discurso a tornar-se viral.
Naqueles oito a 10 segundos, que era tudo o que tinha para se apresentar, em vez de falar da sua educação e das suas aspirações, Emily Sioma preferiu lembrar o drama das pessoas de Flint. Para quem não chega às 15 finalistas, aquela introdução é o único momento que tem de dizer qualquer coisa e Emily Sioma sabia que não queria fazer mais do mesmo: «Como é que vou tornar este momento significativo?», questionou-se dois dias antes, de acordo com a sua explicação, em entrevista à Cosmopolitan. «Sabia que tinha basicamente oito segundos na televisão para fazer um discurso e queria usá-los para algo mais do que só para mim».
Emily Sioma não é de Flint, mas de Grass Lake, que fica a uns 130 quilómetros, no entanto, interessava-lhe que «as pessoas continuassem a falar das condições da água no Michigan e por todos os EUA», porque se trata de «uma crise que se estende por todo o estado do Michigan – produtos químicos conhecidos por causar cancro que agora levaram a transtornos de desenvolvimento». E estão por todo o lado, garante: Flint, Lansing, Grand Rapids, Kalamazoo, Ann Arbor, Alpena. Tão grave é o problema que a cidade de Detroit cortou a água das torneiras das suas escolas para evitar a contaminação dos seus alunos. O nível de chumbo na água que é distribuída à população está bem acima do nível permitido.
O realizador Michael Moore, que estreou nos EUA o seu novo filme, Fahrenheit 11/9 (uma tentativa de explicação de como os Estados Unidos acabaram com Donald Trump na Casa Branca que será distribuído comercialmente no dia 21) na terça-feira, em Flint, garante que «se poderia ter previsto tudo sobre Trump se se tivesse prestado atenção a Flint». E adiantou, na apresentação, que foi naquela cidade que «a organização laboral realmente começou».
«Esta cidade criou a classe média. Não havia classe média antes de Flint, Michigan. Começou aqui. A cidade deu-nos o primeiro presidente de câmara negro do país. Foi a primeira cidade a regulamentar a casa aberta a todos [ilegalizando a discriminação na compra e venda de imóveis] nos Estados Unidos da América.» E agora passa por dificuldades financeiras graves e com uma água que envenena desde 2014, quando a cidade (na bancarrota) decidiu poupar dinheiro passando a ir buscar a sua água ao rio Flint, em vez do lago Huron e o rio Detroit. A falta de tratamento da água e o envenenamento por chumbo levaram o Governo federal a decretar o estado de emergência.
«É triste que a verdade seja por vezes tão difícil de ouvir, mas temos de ser capazes de aceitar estas verdades e encontrar soluções para os nossos residentes e cidadãos», explicou Emily Sioma. «Valeu a pena», garante a jovem, que tinha noção de que a sua possibilidade de chegar ao Top-15 era fraca: «Coroada ou não, temos a oportunidade de causar impacto. E tive impacto!», entusiasma-se Emily na entrevista à Cosmopolitan.
Se, em 2040, a maioria do planeta não terá água suficiente para responder à procura anual das pessoas, Flint é um exemplo real e presente do que poderá acontecer: com pessoas a adoecer por causa da água contaminada – oito mil crianças foram expostas a níveis de envenenamento com efeitos a longo prazo no desenvolvimento do seu cérebro e sistema nervoso. E não é caso único. Há muitas crianças nos EUA que já foram, estão ou serão contaminadas por água com demasiado chumbo. Só que Flint tornou-se um escândalo pela forma como o caso foi gerido desde o princípio, com o estado de Michigan a recusar-se a reconhecer a existência do problema durante meses, mesmo quando a cidade estava na altura a ser dirigida por um gestor de emergência nomeado pelo Governo estadual. Até um alerta dos pediatras de Flint de que havia um aumento substancial na quantidade de chumbo na sangue das crianças da cidade foi menorizado como sendo apenas «informação».
Ironicamente, quando finalmente as autoridades aceitaram que tinham um caso de saúde pública entre mãos e os seus residentes tiveram de passar a beber e cozinhar com água engarrafada, porque a cidade não garantia a qualidade da que saía das torneiras, as contas – e das mais altas no estado do Michigan – continuaram a chegar regularmente a todas as casas.
Agora, numa altura em que o chumbo ainda não desapareceu da água de Flint, Emily Sioma veio lembrar a todos nos EUA que os políticos não podem continuar a esconder os problemas e tentar assobiar para o lado.