Sabia que o nosso sistema imunitário pode ser usado para atacar células cancerígenas? A pergunta foi lançada na página de Facebook oficial do prémio Nobel depois do anúncio, na segunda-feira, dos laureados com o Nobel da Fisiologia ou da Medicina deste ano: o norte-americano James P. Allison e o japonês Tasuku Honjo, «pela descoberta de uma terapia contra o cancro pela inibição da regulação negativa do sistema imunitário», justificaram os especialistas do Instituto Karolinska, uma das maiores faculdades europeias de medicina, que todos os anos indica os premiados desta área. Para o comité do Nobel, os dois imunologistas são protagonistas de «um princípio totalmente novo». «Há mais de 100 anos que os cientistas tentam envolver o sistema imunitário na luta contra o cancro. Até às descobertas seminais dos dois laureados, o progresso no desenvolvimento clínico foi modesto. A terapia de controlo imunitário revolucionou o tratamento do cancro e mudou fundamentalmente a forma como podemos lidar com a doença», considera o comité.
Mas o que tem de diferente a imunoterapia? É que, em vez de ser um tratamento que ataca as células cancerígenas, esta terapia ajuda o sistema imunitário a combatê-las – é certo que pertencem ao organismo e não são um corpo exterior, mas as células cancerígenas têm os seus métodos para que as células de defesa do organismo não as reconheçam.
Resultados inesperados
As investigações de Allison e Honjo foram desenvolvidas nos anos 90. E como resume o comité do Nobel, «em vez de ter como alvo as células cancerígenas, estas abordagens usam os travões das células do nosso sistema imunitário para travar o cancro». Mas a verdade é que nem um nem outro iniciaram trabalhos com o objetivo de encontrar um tratamento para o cancro, tido como a epidemia do século. Ao saber que tinha sido laureado com o Nobel, Allison confessou-se «em estado de choque» por ter alcançado «o sonho de qualquer cientista», explicando que na base da sua investigação estava a a vontade de «perceber como é que as células T funcionam». O rastilho de pólvora para Honjo, por sua vez, foi a morte de um colega do seu curso de medicina com um cancro no estômago. Com o entusiasmo visivelmente mais controlado do que Allison, reagiu à distinção prometendo que vai continuar a investigar «para que a imunoterapia salve mais doentes do que nunca».
Vejamos então como tudo aconteceu. De um lado do oceano, no seu laboratório da Universidade da Califórnia, o norte-americano James P. Allison – que está hoje no Centro M.D. Anderson da Universidade do Texas – quis perceber como é que as células T (também conhecidas como linfócitos T, fundamentais para que o sistema imunitário cumpra a sua função de defesa do organismo) funcionavam e dedicou-se a estudá-las. Percebeu então que a CTLA-4, uma das proteínas desse tipo de células, funciona como um travão dessas células. Quis ir mais longe: Allison tinha já desenvolvido um anticorpo (proteína que atua perante determinada substância estranha ao corpo) que bloqueava a função da proteína CTLA-4. Por isso, teoricamente, esse anticorpo impediria que a CTLA-4 travasse as células T. A prática veio a comprová-lo: em 1994, Allison e a sua equipa fizeram uma experiência em ratos diagnosticados com cancro e alcançaram a cura dos animais através de um tratamento com o tal anticorpo inibidor do travão, que desbloqueou a atividade antitumoral das células T. Na altura, a indústria farmacêutica não lhe deu muito crédito – bons resultados em ratos não significam sempre sucesso em humanos -, mas Allison não baixou os braços e, em 2010, um ensaio clínico com doentes com melanoma trouxe esperança para os humanos: com o tratamento, muitos dos participantes com melanoma em estado avançado ficaram sem sinais da doenças.
No outro lado do Pacífico, também Tasuku Honjo se debruçava sobre as células T, no seu laboratório da Universidade de Quioto, no Japão. E descobriu a proteína PD-1, igualmente presente nas células T. Curioso quanto à sua função, as experiências que desenvolveu ao longo de vários anos vieram a mostrar que, tal como a proteína CTLA-4, também a PD-1 opera como um travão das células T, embora de forma diferente. Em 2012, os ensaios clínicos revelaram que o tratamento do cancro bloqueando a proteína PD-1 – isto é, impedindo-a de travar a atuação das células T – era eficaz em vários tipos de cancro. Os resultados foram realmente inovadores: em alguns pacientes com cancro metastático – considerado até aí incurável por se encontrar já espalhado por outros órgãos além do de origem -, verificou-se que a doença entrou em remissão durante muito tempo, tendo até sido possivelmente curada.
Dos ótimos resultados dos ensaios clínicos com as proteínas CTLA-4 e PD-1, nasceu um novo tratamento do cancro, conhecido como «terapia de controlo imunitário». A terapia de controlo imunitário da PD-1 tem-se revelado a mais eficaz, com resultados em diversos tipos de cancro: do pulmão, renal, linfoma e melanoma. Mais recentemente, novos estudos indicam que uma terapia que envolva ambas as proteínas – a CTLA-4 e a PD-1 – pode trazer resultados ainda melhores.
As investigações de Allison e Honjo abriram caminho para a realização de outros ensaios clínicos que incidem sobre diversos tipos de cancro. Ao mesmo tempo, outras proteínas de controlo imunitário estão a ser estudadas.
Uma doença com demasiadas facetas
Quando se fala de cancro, fala-se em rigor de uma doença que assume diferentes – e demasiadas – formas. Existem diversos tipos de cancro, mas na sua base está sempre a proliferação descontrolada de células anormais que afetam órgãos e tecidos saudáveis. A doença, lembra o comité do Nobel, tem vários tipos de tratamento, uns mais indicados do que outros consoante o diagnóstico. O desenvolvimento de novos medicamentos de imunoterapia traz uma nova esperança à humanidade. E corresponde, sem dúvida, à vontade que Alfred Nobel, criador dos prémios Nobel, expressou no seu último testamento: que a sua fortuna servisse para premiar aqueles que «conferiram o maior benefício à humanidade».