Há jogos que marcam carreiras. Talvez seja exagero dizer que o Escócia-Portugal de Glasgow, no dia 15 outubro de 1980, que cumprirá trinta e oito anos na próxima segunda-feira, precisamente no dia em que Portugal voltará a jogar na Escócia, marcou em definitivo a carreira de Manuel Galrinho Bento. Mas não se pode falar de Bento sem falar dessa noite de Hampden Park. Porque foi mais Bento do que nunca.
A imprensa britânica chamou-lhe «the rubber man», o homem de borracha. E o massacre foi tremendo! Que bela Escócia, essa de Jock Stein, o treinador que morreu no banco, com um ataque cardíaco, liderando a sua seleção contra o País de Gales, cinco anos depois desse jogo frente a Portugal a contar para o apuramento para o Mundial de 1982, em Espanha. Que falhámos, como era costume na altura. Um Stein irritado com o empate que os portugueses arrancaram (0-0), tanto, tanto dele graças a Bento: «Com onze caixotes de lixo plantados na grande-área seria difícil fazermos um golo. E o guarda-redes português foi extraordinário!»
Acrescente-se que, na véspera do encontro, Jock Stein abusara da farronca. E saíra-se com esta: «Vou já dizer aqui o onze que vou colocar em campo para que o meu colega Juca possa estudar bem a nossa seleção. Sei muito bem que tem mais respeito pelos nossos jogadores do que pelos dele». Guerra psicológica. Do meio-campo para a frente, um exército de famintos pelo golo: Gordon Strachan, Souness,Gemmill, AndyGray,KennyDalglish e Robertson. Dores de cabeça para os defesas lusitanos: Gabriel,Simões, Laranjeira e Pietra, com Eurico a ajudar no meio. Medo, sim, não há como o negar. Nem Juca o negava depois de ter conseguido o precioso empate: «Não se pode jogar contra a Escócia de outra forma que não esta. Eles têm um poder ofensivo tremendo. O empate servia-nos e saímos daqui contentes. A atuação de Bento foi verdadeiramente fantástica! Mostrou que está no melhor momento da sua carreira».
Bento, Bento, Bento e mais Bento. Escasseavam os elogios para o trabalho do guarda-redes do Benfica. E ele, modesto como o Raposão da Titi, n’A Relíquia do divino Eça: «Correu-me bem. Toda equipa foi muito humilde. Só crámos uma oportunidade de golo durante todo o jogo, mas a verdade é que viemos com o objetivo do empate». Humilde é como quem diz. Lembro-me bem desse jogo infernal. Portugal respirava pavor por todos os poros. Bento não.
Capitão coragem!
Já mais de onze anos se passaram sobre a morte de Bento, o homem da coragem lendária. Figura quixotesca de bigode descaído, de cabelo longo e mãos enormes que não pareciam ser dele.
Diz-se que quando a mulher de Nelson Rodrigues o avisou da morte súbita do romancista Guimarães Rosa, o cronista exclamou confuso: «Mas morreu como, se estava vivo?». É a única coisa requerida para quem tem de morrer. E somos todos.
Bento estava vivo. Vivíssimo! Dificilmente alguém poderia estar tão vivo em campo, tão atento, tão seguro de si próprio. Era o exemplo acabado da valentia. Não se incomodava com a sua estatura meã, um metro e setenta e quatro centímetros, assim por extenso, toda a sua carreira foi por extenso. Barreirense, Benfica, Seleção Nacional.
Os minutos passavam devagar, tão devagar. Para os portugueses, esclareça-se. Para os esoceses, os minutos pareciam que voavam. Duas conceções antagónicas do tempo. Os minutos de Bento, nesse jogo, foram infinitos. Não tinha mãos a medir. As bolas vinham e iam e continuavam a vir. E ele às vezes querendo-as, recebendo-as nos braços, afagando-as, acarinhando-as com as mãos; às vezes desprezando-as, socando-as para longe como se fosse movido pelo ódio, empurrando-as para fora das linhas, e logo esperando por elas, outra e outra vez.
Lutava contra os adversários e contra o cansaço de ter de se manter continuamente em jogo, sem distracções, sem um segundo para respirar fundo, enchendo os pulmões de ar, num alívio por minúsculo que fosse.
A malta gritava-lhe: «Aguenta Manel!».E o Bento desmanchava-se em defesas sublimes, tornando infinito o seu corpo pequeno de homem da Golegã, terra ribatejana onde mandam os cavalos, figura inconfundível, o cabelo escorrendo de suor, as mãos enormes que pareciam não ser dele, talvez algum deus do futebol lhas emprestasse no início de cada jogo.
Bento devia escrever-se com maiúsculas: BENTO! E levar um ponto de exclamação no fim.
E a coragem? A prodigiosa coragem do Bento! Ele que, no início da carreira, vinha lá do Barreiro na camioneta de vender o peixe, passando aqui e ali para dar boleia aos colegas, logo mal o sol deitava para fora da noite as antenas de luz.
Nessa noite, em Hampden Park. lugar histórico do futebol, Bento entrou definitivamente naquele lugar apertado onde mal cabem os eleitos.
Manuel Fernandes, Carlos Manuel, Jordão: também eles se iam transformando em defesas, ajudando os defesas, tentando criar na frente da grande-área um muro no qual a arte de Dalglish e Gemmill e o temperamento de Andy Gray não encontrassem uma brecha sequer. Pode muito bem existir nas Terras do Bouro um São Bento da Porta Aberta, mas, em Glasgow, Bento fechava todas as frinchas. Não, por ali não passaria nem o vento da noite fria. Logo no primeiro minuto voara para um remate impressionante de Dalglish, por várias outras vezes contrariaria o enorme avançado do Liverpool.
O público escocês é vibrante e, por vezes, assustador, mas reconhece o mérito inequívoco dos grandes opositores. Não faltaram «ohs!» de sentida admiração de cada vez que o guarda-redes de Portugal mergulhava, suicida, aos pés dos avançados da Escócia. Não esqueceriam o homem de borracha. «O capitão coragem aguentou todas as tormentas», escreveu-se no The Scotsman. «Bento desafiou a natureza».
Manuel Galrinho Bento: um metro e setenta e quatro centímetros de tamanho. Isso por fora. Por dentro, o Bento era enorme. Do tamanho do coração que o atraiçoou aos 58 anos.
Bento não agarrou a morte de frente como um ‘pegador’ de touros lá da sua Golegã. Recebeu-a de peito aberto. O peito onde o coração deixou de bater.