O que é ilegal existe e o facto de o consumo de uma substância ser ilegal não significa que não se venda. O cantor Ian Power admite que consome canábis e que a substância faz parte da sua rotina. Ontem, este habitante de São João da Terra Nova, no Canadá, emocionou-se. “Acho que é um dos melhores momentos da minha vida. Tenho lágrimas nos olhos”, disse. Depois de estar durante horas ao frio, numa fila à porta de uma loja, Ian Power foi o primeiro a comprar canábis legal no Canadá.
Na verdade não foi uma espera de horas, foi de anos, já que passou cerca de três décadas a comprar canábis no mercado negro. Agora, já não precisa de contornar a lei. A partir de ontem está em vigor a lei que torna legal a compra, venda e consumo de canábis para fins recreativos. O Canadá torna-se o segundo país, depois do Uruguai (ver texto ao lado), onde todos, desde que maiores de idade, podem consumir canábis. Recorde–se que o uso da substância para fins medicinais já é legal no país desde 2001.
Ian Power acha que a mudança começou e diz que “chega de becos sem saída”. Mudança é também uma palavra que marca o discurso do primeiro ministro canadiano, Justin Trudeau, desde que, em junho, a proposta passou no senado canadiano: “Tem sido muito fácil para as nossas crianças comprar marijuana – e, para os criminosos, obter lucros com isso. Hoje, nós mudámos isso”, escreveu no Twitter. Ontem voltou a insistir que o governo canadiano está a tirar “os lucros das mãos dos criminosos” e, ao mesmo tempo, a dar “uma maior proteção” às crianças do país.
O governo canadiano estabeleceu como preço sugerido de venda ao público de cada grama de marijuana os dez dólares canadianos, cerca de 6,6 euros, e está convencido de que este valor é suficiente para competir com o mercado negro; o valor vai variar ao longo do tempo para poder acompanhar a venda ilegal. Segundo as autoridades canadianas, o preço final de um grama de marijuana deverá ser apenas 25% superior ao que é praticado no mercado negro e, além disso, o preço final já inclui os dez por cento de impostos – um preço que, pensam as autoridades, levará o consumidor de canábis a optar pelas lojas oficiais, uma vez que estas oferecem garantias de qualidade como o nível de THC, o componente psicoativo da droga.
Segundo um estudo feito pela empresa Ipsos, quatro em cada dez canadianos garantem que os preços praticados vão determinar o sítio onde vão comprar marijuana: ou legalmente, ou no mercado negro. Na província de Ontário, a maior do país – onde se situa a capital, Otava, e a cidade mais populosa, Toronto -, o preço ideal para os compradores situa-se entre 10 e 14 dólares canadianos por cada grama, isto é, entre 6,6 euros e 9,3 euros.
Para comercializar a canábis criaram–se lojas autorizadas. Por exemplo, o governo da província de New Brunswick tem agora a empresa pública Cannabis NB que, neste momento, comercializa marijuana em lojas físicas e também pela internet. Com um catálogo de 76 produtos, a página contém informação tão variada que vai desde a forma apropriada de fazer um cigarro de marijuana até às melhores formas de conservar a droga para manter a sua qualidade.
Quem ganha e quem perde?
Com a legalização esperam-se mais casos relacionados com a canábis nos tribunais, nos próximos anos. Bill Bogart, especialista em drogas de Toronto, adverte para o que provavelmente se vai passar no futuro: “Enquanto nos afastamos de um regime de proibição estamos, ao mesmo tempo, a mover-nos em direção a uma estrutura de regulamentação muito detalhada.” Neste ponto, os advogados têm mais a ganhar, já que existe uma questão fundamental: como é que as autoridades avaliam os condutores com problemas de droga em comparação com os condutores alcoolizados? Bogart também prevê que haja desafios no que diz respeito às regras sobre os produtos comestíveis, que só serão legalizados daqui a pelo menos um ano.
Quem perde são os pequenos produtores, que podem ter os dias contados, abafados pelos grandes produtores licenciados e pelos preços competitivos. Apesar de terem licenças limitadas para cultivar canábis medicinal, alguns produtores de pequena escala continuam a fornecer o mercado negro.
Ainda que a lei tenha sido aprovada, o uso de canábis é diferente em cada um dos estados. Em Ontário, por exemplo, pode fumar-se marijuana em qualquer lugar onde o tabaco é permitido. Na Terra Nova, Labrador, New Brunswick e Saskatchewan, o consumo público é proibido.
Dez milhões de dólares do tráfico passaram a ser legais no Uruguai
O governo uruguaio distribuiu recentemente um guia para evitar problemas no consumo da canábis, de cuja despenalização o Uruguai foi pioneiro, em dezembro de 2013. O folheto foi elaborado pelo Instituto da Regulação e Controlo da Canábis (IRCCA) com base nas “Pautas canadianas sobre o risco reduzido do uso da canábis”, elaborado pelas autoridades canadianas.
O folheto, distribuído pelas 17 farmácias do país com autorização para a venda de canábis, foi lançado no final de setembro com a presença da embaixadora canadiana no Uruguai, Joanne Frappier, sinal da boa relação estabelecida entre os dois países sobre a questão.
Martín Rodríguez, diretor executivo do IRCCA, afirmou no lançamento que o folheto “simboliza” o final do intenso trabalho conjunto com instituições canadianas que “desenvolveram uma profunda investigação científica” sobre os riscos de consumo de marijuana.
A pouco tempo de completar cinco anos da despenalização do consumo, cultivo e venda de canábis, o consumo cresceu no Uruguai, como seria de esperar. De 9,3% em 2014 passou-se para 15,3% de consumidores de canábis, sendo o aumento, percentualmente, muito maior nos homens e mulheres de mais de 35 anos, e duplicando ou mesmo triplicando entre os de 55 a 65 anos, de acordo com os dados do Monitor Cannabis, site criado pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República.
Foi em 2014 que começaram a inscrever-se os primeiros cultivadores autorizados de canábis e se criaram os primeiros clubes com filiação. De acordo com a página do IRCCA, hoje há 6880 cultivadores, 109 clubes de fumadores e 28 987 consumidores registados na base de dados pública.
Segundo o último relatório do IRCCA sobre o “Mercado Regulado de Canábis”, publicado em agosto, houve uma redução de mais de 1800 pessoas registadas como cultivadores para consumo próprio simplesmente porque as pessoas deixaram expirar a sua licença, que é de três anos.
Naturalmente, a maioria dos consumidores de marijuana continuam a estar situados na faixa etária dos 18 aos 29 anos, que correspondem a 49,1% da lista. No entanto, nota-se um maior envelhecimento do perfil do consumidor.
O mercado de consumo de drogas no Uruguai equivale, segundo os dados do Monitor Cannabis, a 40 milhões de dólares (34,5 milhões de euros) anuais, tendo o Estado conseguido, com esta legalização, que dez milhões de dólares passassem a fazer parte do setor legal da economia.
Aquilo que se verificou pela legalização e controlo por parte do Estado de uma parcela do mercado negro das drogas no Uruguai foi o aumento dos homicídios relacionados com ajustes de contas entre traficantes. “Quando tanto dinheiro passa em tão pouco tempo para o mercado legal, alguém tem de acusar o golpe e, justamente, isso está a coincidir com um claro aumento das disputas localizadas em certas zonas, em geral bairros periféricos pobres de Montevideu, onde se instalou o narcotráfico”, disse ao “El País” Marcos Baudean, investigador da Universidade ORT, que analisa o impacto da lei na segurança pública do país.