«Parte do que parte fica»

Este cartaz, colado próximo do que referi na semana passada, no Regueirão dos Anjos, em Lisboa, declara taxativamente que «parte do que parte fica». E é bem verdade que parte ou, por vezes, muito do que parte fica, para sempre, connosco. Várias são as situações ou as pessoas que nos deixam, mas que, tendo depositado…

Este cartaz, colado próximo do que referi na semana passada, no Regueirão dos Anjos, em Lisboa, declara taxativamente que «parte do que parte fica». E é bem verdade que parte ou, por vezes, muito do que parte fica, para sempre, connosco.

Várias são as situações ou as pessoas que nos deixam, mas que, tendo depositado em nós sementes daquilo que são, acabam por ficar connosco, nas nossas memórias, naquilo que somos.

Já todos, ou quase todos, passámos por experiências de perda, e sabemos bem como é verdade que há algo que permanece connosco – nas nossas recordações, no nosso quotidiano, na marca que deixaram em nós e que moldou a nossa personalidade.

Todos somos definidos pelas situações e pelas pessoas com que nos cruzamos. São essas situações e essas pessoas que vão moldando a nossa maneira de ser. É desses encontros e desencontros constantes que vamos vivendo e são eles que nos definem enquanto seres humanos. Porque a vida, como afirma Patrícia Reis em Chave de Entendimento para uma Sinfonia Perfeita: «não é o ideal imaginado. É como aqueles bonecos animados que correm e deixam rasto, pode ser que escapem à dinamite, à rocha que ameaça cair numa avalancha, ao piano que, inesperadamente, cai de uma varanda. Nunca se sabe exatamente seja o que for e tudo pode mudar em segundos».

E é exatamente essa inevitabilidade que caracteriza a vida e a torna imprevisível que faz com que tanto gostemos de viver. Porque cada dia nunca é igual a outro. Mesmo que se repitam as mesmas ações, os mesmos percursos, as mesmas tarefas, as mesmas rotinas, nunca nada é igual, porque nós não somos os mesmos do dia anterior, os nossos sentimentos não são iguais, o nosso estado de espírito não é igual, aquilo que vemos ou de que nos apercebemos não é o mesmo. E se cada um não é igual, aquilo que fazemos também não pode permanecer igual, por mais idêntico que nos pareça. Daí que o mundo vá mudando constantemente, trazendo-nos novos desafios e fazendo com que nos tenhamos de adaptar e reagir a cada novo dia que passa, a cada nova pessoa com que nos cruzamos, a cada nova situação com que nos deparamos.

Viver é, pois, uma aventura que encerra um mistério, que todos os dias temos de desvendar, mesmo que apoiados no que já vivemos, nas experiências que tivemos, naquilo que que julgamos que conhecemos. Até porque as memórias, como diz Lobo Antunes, em Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água, são «correntes de ar da alma quando as janelas dentro de nós se abrem para o passado», tornando esse passado presente. É como se essas «correntes de ar» nos trouxessem de volta o passado ou, mesmo, nos transportassem para um passado que pensávamos estar já distante de nós, fazendo-nos reconhecer que, na verdade, como diz poeticamente Andreia C. Faria: «entre o falhanço e o milagre existirá uma diferença estrutural».

Viver e pensar sobre a vida são, no fundo, formas de enfrentar a realidade que, constantemente, nos recordam que o pensamento está enraizado em nós e não há machado que possa cortá-lo.

 

Maria Eugénia Leitão