Marinheiros e prostitutas. Há quem garanta que bastava juntar estas duas palavras para ir parar à história do Cais do Sodré, em Lisboa. Foram estas as raízes do bairro que, nos últimos anos, já passou por tudo. Pintou-se uma rua, abriram-se bares, mudaram-se horários, fizeram-se protestos, conquistou-se o lugar de destino noturno preferido de muitos. No entanto, no meio de todas as mudanças, parece ficar cada vez mais perdida a memória da raiz libertina. Com alterações que não acabam, há quem tema que se perca a história de uma zona que tem mais para contar do que se pensa, ou não fosse, durante grande parte do séc. xx, um verdadeiro abrigo para marinheiros em trânsito onde nasceram hábitos e casas que já fazem parte do vocabulário de qualquer bom lisboeta.
Entre as casas emblemáticas desta zona está o espaço noturno Oslo, aberto desde 1981 e agora muito próximo de ter de fechar portas. Depois de ter lutado em tribunal há alguns anos para conseguir não abandonar o espaço, recebeu uma ordem de despejo que marca o dia 2 de novembro como a data para entregar a chave aos proprietários do edifício. Ao i, Carlos Monteiro, sócio-gerente, explica que “não houve sequer espaço para negociação. As rendas estão todas em dia e claro que queríamos continuar, mas não foi dado espaço para isso. E embora o prazo seja até 2 de novembro, temos de contar com o tempo para tirar tudo. Vai ter de fechar antes”. O espaço noturno de que falamos quase não mudou de mão nestes mais de 30 anos, mas o edifício, sim. “Começou a mudar de mãos e chegámos até aqui. Não nos foram dados motivos. Querem que o Oslo deixe de funcionar naquele espaço e nós temos de sair. Provavelmente, mais um caso de especulação imobiliária.”
Este espaço junta-se assim a outros nomes e engrossa a lista de alterações que desde cedo fizeram correr muita tinta. Em 2016, o verniz estalou com a notícia de que algumas das míticas discotecas do Cais do Sodré poderiam estar muito perto de fechar portas. Nesta altura, os sócios do Jamaica, do Tokyo e do Europa viram-se a braços com uma batalha para evitar que os espaços perdessem o seu lugar. Estávamos em março de 2016. A primeira notificação, enviada pelos proprietários do edifício, informando-os de que teriam seis meses para abandonar os espaços que ocupam chegou-lhes em junho de 2015, e a segunda em outubro.
Por esta altura, um dos sócios do Jamaica argumentou que se tiverem de fechar alguns anos, até ser encontrado um novo local, perderão o negócio, “porque as pessoas encontram outros caminhos”. E lembrou que quando o prédio teve obras, após o colapso da cobertura, em 2011, só fecharam durante cerca de quatro meses.
Os empresários em vias de despejo juntaram-se para contestar a requalificação do edifício como uma obra de remodelação profunda que obrigasse à desocupação, conforme estava previsto na lei do arrendamento, sem ter em conta que se trata de “lojas históricas”, como é o caso do Jamaica.
As obras de remodelação pensadas desde essa altura serviam a ideia de que o Jamaica, o Tokyo e o Europa tinham de ser trocados por um hotel. Mas um grupo de amigos e clientes destes espaços noturnos do Cais do Sodré conseguiu mudar o rumo dos acontecimentos. Aliaram-se para lançar uma petição em defesa destes espaços. Em apenas uma manhã somaram-se 3869 assinaturas a favor da manutenção dos icónicos bares desta zona.
Os espaços noturnos acabaram por poder continuar a funcionar normalmente, ainda que sempre com o fantasma da possibilidade de terem de fechar portas a qualquer momento. Com várias ações e conversações em andamento para travar o fecho – uma recolha de assinaturas para entregar no parlamento; processos em tribunal; negociações com o senhorio para manter, pelo menos, o Jamaica aberto depois das obras de recuperação do edifício – ganharam-se dias em que a “Rua Cor de Rosa” continuou a ter espaço para estas casas que há anos fazem parte da vida de quem se deixou conquistar por este destino noturno de eleição para turistas e locais.
Recorde-se que a discoteca Jamaica está aberta no Cais do Sodré desde 1971 e o Tokyo funciona com esse nome desde 1978 – o espaço foi inaugurado em 1968 como Tamisa. O Europa abriu, renovado, em setembro de 2006.
Um passado sem espaço no futuro Com a crescente transformação em Lisboa têm sido grandes as preocupações com a possível descaracterização das zonas mais históricas. Quando começaram a fechar espaços com dezenas de anos, em setores vários, a Câmara de Lisboa avançou com um programa municipal, “Lojas com História”, para a distinção e atribuição de apoio financeiro aos estabelecimentos classificados. Para aceder a tal apoio, o Regime de Reconhecimento e Proteção de Estabelecimentos e Entidades de Interesse Histórico e Cultural ou Social Local definiu como critérios gerais “a longevidade reconhecida, assente no exercício da atividade suscetível de reconhecimento há, pelo menos, 25 anos” e a existência de património material ou de património imaterial.
Ainda que se multipliquem entusiastas quanto ao futuro e aos novos espaços que podem vir a nascer nalguns destes sítios com anos de história, há quem recorde a importância de conhecer bem o passado. No site “Pilotos da Barra” – figuras náuticas que se perderam no tempo –, um ex-piloto explica o que já foi este bairro, que viu o pai de Herman José traduzir os contratos em alemão ao balcão do BPA ou Fernando Pessoa e Bordalo Pinheiro na lista da elite intelectual que frequentou o Café Royal. Ao i, o humorista recorda: “Essa zona foi uma das mais importantes . Havia um número enorme de empresas a trabalhar nessa zona.”
Para quem conheceu bem o Cais do Sodré de outros tempos, era “mesmo o centro, senão do universo, pelo menos do mundo”. É esta a descrição de muitos ex-pilotos. Também há quem recorde que acompanhar a história desta zona passa por saber que o Jamaica, por exemplo, passou de bar de alterne para bar da esquerda que dançava Zeca e Patti Smith. A verdade é que, com vários espaços em risco de fechar e novos projetos a bater à porta, há quem garanta que, mesmo depois da última valsa, ficarão sempre, pelo menos, as memórias.