A Arábia Saudita começou por dizer que o jornalista Jamal Khasoggi tinha saído do consulado saudita em Istambul pelo seu próprio pé. Depois, que já tinha mandado prender 18 pessoas por estarem envolvidas numa luta a murro que correu mal. A seguir, que tinha sido um interrogatório a dar para o torto. Afinal, agora, a morte do jornalista foi premeditada, levada a cabo pelos serviços secretos sauditas, sem conhecimento do príncipe herdeiro, e Mohammed bin Salman já promete uma remodelação nos serviços de inteligência do país.
A narrativa mudou tantas vezes que já ninguém parece acreditar que a morte do jornalista crítico do regime não tenha sido decidida pelas mais altas instâncias da monarquia saudita, nomeadamente o próprio príncipe herdeiro, conhecido por MBS. A tal ponto que Donald Trump lhe chamou «o pior encobrimento da história dos encobrimentos», e mesmo sabendo da tendência do Presidente dos EUA em hiperbolizar os acontecimentos, não custa tomá-lo à letra neste caso.
As últimas informações sobre o acontecimento dão conta que a morte do jornalista saudita, que se autoexilou nos EUA por ser crítico do regime, foi tudo menos um caso de improvisação: Khashoggi foi atraído a Istambul com o falso pretexto de que os documentos de divórcio de que precisava para se voltar a casar não podiam ser emitidos nos Estados Unidos. Aparentemente, em Riade, pensava-se que levar para a frente o plano em Washington seria muito arriscado, com o potencial de pôr em causa as relações próximas entre os dois países, segundo contaram ao Independent fontes diplomáticas e um amigo de Khashoggi.
O jornalista tinha tratado dos papéis em Washington e, em princípio, haviam-lhe dito que podia levantá-los aí. Posteriormente, disseram-lhe que como a sua noiva, Hatice Cengiz, é turca e o casamento se iria realizar na Turquia, os documentos só poderiam ser recolhidos no consulado em Istambul.
Não é segredo que há muito tempo Khashoggi era um alvo dos serviços secretos sauditas. Pedra no sapato de MBS, nomeadamente na guerra que a Arábia Saudita leva a cabo no Iémen, queriam arranjar forma de o atrair ao país para o prender. O correspondente do Washington Post recebeu imensas propostas prestigiantes e lucrativas para regressar, que foi sempre recusando, conhecedor do que lhe poderia acontecer se regressasse. Só que desta vez, Khashoggi não se apercebeu que a monarquia lhe estendia uma armadilha através de um mecanismo burocrático menor.
«Por que tinha o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman tanto medo de Jamal Khashoggi que se diz que terá dado ordens no verão passado para que o colunista do Washington Post fosse levado de volta para a Arábia Saudita?», perguntava ontem David Ignatius naquele jornal norte-americano, antes de lhe chamar herói, «parte de uma tradição do jornalismo árabe com uma história longa e corajosa». Para Ignatius, Khashoggi era perigoso para MBS porque a sua narrativa crítica, os seus questionamentos, a sua independência, introduziam areia no discurso de modernização e glória que o príncipe herdeiro e quem o rodeia dá do seu governo.
Depois de várias explicações contraditórias sobre os acontecimentos de Istambul, o que a Casa de Saud agora vende (narrativa que tudo indica foi acordada com a Administração americana que precisa de uma explicação credível para evitar tomar medidas drásticas nas relações entre os dois países, algo que poderia pôr em causa o multimilionário acordo de venda de armas assinado com Riade) é que houve premeditação no plano, mas este foi feito à revelia do príncipe herdeiro.
Uma narrativa que faz lembrar aquelas cenas dos filmes americanos em que uma qualquer unidade das forças especiais norte-americanas, formada e treinada para fazer trabalho sujo no estrangeiro, é informada da missão e relembrada no final: ‘se algum for apanhado, os EUA negarão que sejam agentes’. A Arábia Saudita estará nessa fase, vendendo que os autores da missão afinal agiram em nome próprio sem conhecimento do Governo.
Como escreve o Washington Post, os serviços de inteligência e dirigentes norte-americanos e europeus referem que uma operação no estrangeiro contra uma pessoa que é crítica do príncipe herdeiro dificilmente seria levada a cabo sem conhecimento das chefias dos serviços secretos sauditas.
Riade afirma que mudou a posição em relação ao caso devido à informação que lhe foi enviada das diligências dos investigadores turcos e das provas recolhidas. Na semana passada, as autoridades sauditas já tinham anunciado a prisão de 18 pessoas e a demissão de altos funcionários do seu Governo, depois das suas próprias investigações terem chegado à conclusão que Khashoggi teria sido morto durante uma luta no consulado em Istambul.
‘Ele pensava que estava seguro na Turquia’
Entretanto, a noiva do jornalista, que esperou por ele à porta do consulado e denunciou o seu desaparecimento às autoridades, disse ao canal de televisão Habertürk que se bem que Khashoggi temia que a sua presença na representação diplomática saudita em Istambul provocasse alguma tensão, estava convencido que não teria problemas, nem que seria preso.
«A sua rede local na Turquia era muito boa como sabe, a sua rede política também», disse Hatice Cengiz. «Ele pensava que a Turquia era um país seguro e que se fosse detido ou interrogado, o assunto seria resolvido rapidamente», acrescentou. Mesmo assim, passou-lhe o número de telefone de Yasin Aktay, assessor do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, para contactar em caso de emergência.
E tudo indicava que a situação se resolvesse sem grandes problemas, pois o jornalista teve uma primeira visita sem contratempos ao consulado a 28 de setembro. Hatice Cengiz, que dessa vez entrou com o noivo na representação diplomática, diz que foram bem tratados. Nesse dia, os funcionários pediram a Khashoggi que voltasse a 2 de outubro, dia da sua morte.
Cengiz referiu ontem que não aceitou o convite de Donald Trump para ir à Casa Branca e que só quando os Estados Unidos mostrarem que estão realmente a envidar esforços para resolver o assassinato de Khashoggi é que mudará de ideias. Até porque a académica acha que uma fotografia com Trump poderia mudar a opinião pública a favor deste, quando na verdade ela acha que os EUA se têm mostrado pouco rigorosos na abordagem ao caso.
«O meu pedido é que todos os responsáveis implicados nesta barbárie, do nível mais baixo ao nível mais alto, sejam apresentados à justiça e punidos», desabafou Hatice Cengiz.