Não fosse o ódio que muitos nutrem pelas posições políticas de Chico Buarque e ontem, entre os apoiantes de Jair Bolsonaro, até poderia ter sido noite para cantar “a vida é bela, o sol, a estrada amarela, e as ondas, as ondas, as ondas”. Do lado de Fernando Haddad, mais propenso a buscar em Chico afago para a tristeza – conta-se que chorou na noite de domingo -, podia até invocar a mesma canção, na altura em que diz “vagueia, devaneia, já apanhou à beça, mas para quem sabe olhar, a flor também é ferida aberta e não se vê chorar”.
Ao que vamos é que o Brasil que emergiu das eleições de domingo é um país dividido para lá de apoios a um ou outro lado da barricada: é um país que se divide em duas metades antagónicas obrigadas a ser uma só, como a canção de Chico que mistura esperança e tristeza, que mistura “veneno” com “vai morrer de rir”.
O resultado desta segunda volta das eleições, que confirmou o indicado por todas as sondagens, é uma onda verde e amarela que tomou grande parte do país, mas não todo. E que se estendeu a muitas cidades, mas não todas. E que até pode ser transversal a ricos e pobres nos grandes centros urbanos, onde Bolsonaro ganhou de goleada, como em São Paulo, onde obteve 67,97% dos votos e venceu na maioria dos municípios. Importante para a vitória, tendo em conta ser o maior círculo eleitoral: 33 milhões de eleitores, 22,4% do total do país.
Só uma ilha de resistência a norte aguentou o avanço do antipetismo: uma onda que não chegou para ganhar a eleição, mas que pintou uma parte do Brasil a vermelho. Uma ilha de petismo marcada por uma zona geográfica que inclui todos os nove estados do Nordeste e mais dois do Norte (Pará e Tocantins).
Uma onda que também é de rendimento, de menor rendimento. Nas mil cidades menos desenvolvidas do Brasil, aquelas que figuram na parte de baixo do Índice de Desenvolvimento Humano, Haddad venceu em 975 e Bolsonaro em apenas 25. Pelo contrário, nas mil cidades mais ricas do país, aquelas que figuram no topo da lista do Índice de Desenvolvimento Humano, o resultado é quase o inverso: Bolsonaro ganhou em 967 e Haddad em apenas 33.
Daí se explica que, embora o candidato do PT à presidência tivesse gritado vitória em 2810 cidades, mais 50 que o deputado do PSL, que ganhou em 2760, foi Bolsonaro a poder festejar e com diferença substancial de votos: 10,7 milhões.
Não se poderá dizer, por isso, que Bolsonaro só ganhou com o voto dos mais ricos (e isso inclui, além dos mais abastados, a classe média alta e a classe média), porque sem o voto de uma camada importante dos mais pobres, as contas não se fechariam. No entanto, o mapa do resultado de domingo não poderia ser mais esclarecedor de como o rendimento influiu na escolha do novo presidente do Brasil.
De acordo com as contas feitas pelo “Estadão”, os locais com menor qualidade de vida, com menos acesso à educação, menos rendimento e menor esperança de vida foram aqueles em que os brasileiros maioritariamente optaram pelo candidato do PT em vez da mudança prometida pelo candidato do PSL.
A esperança gorada
Na última semana de campanha desta segunda volta, entre as hostes de Haddad ainda chegou a pensar-se que, além do Nordeste, era possível conseguir conter a onda amarela noutros sítios. A campanha do PT chegou mesmo a entusiasmar-se e acreditar que restava tempo para a virada, para conseguir fazer apoiantes de Bolsonaro mudar de lado e fazer gente inclinada para o branco e nulo a votar afirmativamente em Haddad.
Os números mostram que tal chegou a acontecer, embora menos que o esperado e necessitado para inverter uma tendência que parecia impossível de travar, como veio a acontecer. É certo que 120 municípios do Brasil onde na primeira volta ganhou Bolsonaro, desta vez entregaram a vitória a Haddad. Só que Bolsonaro também conseguiu reverter as contas em 25 municípios onde o PT ganhara na primeira volta. E, no cômputo geral, esses 95 municípios a mais não vieram alterar em nada o balanço. Para chegar aos 10,7 milhões de votos a mais do deputado do PSL era preciso muito mais municípios mudarem, principalmente os urbanos e suburbanos com maior peso eleitoral, e, isso, Haddad não conseguiu.