Vichai Srivaddhanaprabha. O adeus sem anúncio do empresário mais que perfeito

A queda do helicóptero nas imediações do Estádio King Power pôs um fim abruto à história do milionário tailandês que revolucionou um pequeno clube de Inglaterra – mas também toda uma cidade. Desde o último sábado, Leicester chora a perda de um dos seus cidadãos mais estimados

O nome é tudo menos britânico, mas a cidade de Leicester ainda não parou de chorar por ele desde a noite do último sábado, quando a tragédia se abateu sobre o Estádio King Power. Pouco depois do apito final do encontro entre o Leicester e o West Ham, o helicóptero que habitualmente levava o proprietário do clube, Vichai Srivaddhanaprabha, para fora do recinto após os jogos dos foxes despenhou-se no parque de estacionamento adjacente ao campo. Numa primeira instância, a polícia de Leicestershire pediu aos media para «evitar a especulação» sobre a identidade dos tripulantes, mas a confirmação oficial acabaria por chegar na noite de domingo: o senhor Vichai, juntamente com mais quatro pessoas, tinha falecido na sequência do acidente.

A romaria ao Estádio King Power, durante a noite de sábado e todo o dia de domingo, deixava já adivinhar o desfecho, com centenas de cidadãos e adeptos do clube a deixar coroas de flores, cachecóis e mensagens de homenagem ao homem que comprou o clube em 2010, evitando a sua queda no abismo, e o levou ao topo do futebol inglês e europeu. A caixa negra do helicóptero foi recuperada na segunda-feira e levada desde logo para análise dos investigadores, estando ainda por apurar a causa da tragédia.

 

O making-of do mais belo conto de fadas

De uma coisa não restam dúvidas: Vichai Srivaddhanaprabha era um homem amado em Leicester, e o que fez pelo clube tinha apenas uma quota-parte de responsabilidade nesse aspeto. Nascido em Banguecoque a 5 de junho de 1958, numa família de tailandeses de origem chinesa com o apelido Raksriaksorn, Vichai tornou-se um empresário de renome através das lojas duty free (livres de impostos) King Power, aproveitando o boom de turismo na Tailândia no início dos anos 90. Em 2006, aquando da inauguração do novo aeroporto de Suvarnabhumi, na capital tailandesa, a King Power ficou com o exclusivo das lojas no recinto e a fortuna de Vichai cresceu, tornando-o um dos milionários mais proeminentes do país – ocupava atualmente o quinto lugar nessa lista, com uma fortuna avaliada em 2,8 mil milhões de euros. Em 2012, de resto, mereceu uma das maiores honras nacionais, quando o Rei Bhumibol lhe atribuiu o nome de Srivaddhanaprabha, título atribuído pela monarquia tailandesa a pessoas que se destaquem pelos contributos para o país – Srivaddhanaprabha significa «a luz da glória progressiva».

«Era um homem muito importante na Tailândia. Há um sentimento enorme de perda, sobretudo entre a comunidade futebolística. Ele ajudou e ajudava muito o futebol tailandês», explica ao b,i. Luís Viegas, que desempenha desde 2014 as funções de responsável pelo departamento de análise e scouting do Bangkok United, um dos principais clubes da Tailândia. «Tinha por exemplo um projeto que se chamava Fox Hunt: escolhia miúdos daqui e levava-os para Inglaterra, para a academia do Leicester (pagava-lhes tudo, a escola, a estadia), para promover o desenvolvimento deles enquanto jogadores e pessoas e depois colocá-los aqui em clubes da Tailândia – nós recebemos aqui material de alguns para analisar. Promovia estágios no Leicester para jogadores e treinadores daqui, e quando foi campeão de Inglaterra trouxe o clube cá. Contribuía monetariamente para as seleções, tanto masculinas como femininas, e construiu mais de 100 campos por todo o país para as crianças jogarem futebol», completa o técnico luso.

A ligação oficial ao Leicester começou em agosto de 2010, quando Vichai comprou o clube, então no Championship (segundo escalão do futebol inglês) a Milan Mandaric por quase 44 milhões de euros. Nessa altura, a King Power já era o principal patrocinador do Leicester há duas temporadas. Diz-se, porém, que a paixão do milionário tailandês pelos foxes remontava já a 1997, quando viu o Leicester vencer o Middlesbrough (1-0, após prolongamento) na final da Taça da Liga inglesa, em Wembley – terá sido o primeiro jogo a que Vichai assistiu ao vivo em Inglaterra.

Desde logo, o milionário mostrou ao que vinha. Pagou as dívidas do clube, que ascendiam aos 120 milhões de euros, contratou reforços de renome, como Yakubu, Darius Vassell ou até o guarda-redes português Ricardo, e foi também lesto a trocar de treinador, com Paulo Sousa a dar o seu lugar a Sven-Goran Eriksson, que gozava de enorme reputação na Grã-Bretanha por essa altura – havia sido selecionador inglês de 2001 a 2006. Demorou quatro anos a conseguir o objetivo da promoção à Premier League, conseguido em 2013/14 com o inglês Nigel Pearson ao comando. Manteve o mesmo técnico na época seguinte, em que o Leicester conseguiu a permanência na penúltima jornada, e numa altura em que já se encontravam no clube nomes como Kasper Schmeichel, Wes Morgan, Robert Huth, Danny Simpson, Danny Drinkwater, Riyad Mahrez ou Jamie Vardy.

Para 2015/16, uma aposta mais arrojada, na tentativa de conseguir um lugar no top-6: ao banco chegava o cotadíssimo Claudio Ranieri – a quem, no entanto, a glória parecia escapar por entre os dedos já há muitos anos, apesar das passagens por clubes tão sonantes como o Valência, o Atlético de Madrid, o Chelsea, a Juventus, a Roma ou o Inter de Milão. Ao técnico italiano, e aos nomes já acima referidos, juntou as contratações de Christian Fuchs, Gokhan Inler e Shinji Okazaki, jogadores com alguma reputação em clubes de segundas e terceiras linhas da Europa, e N’Golo Kanté, um completo desconhecido proveniente do futebol francês.

Longe estava o senhor Vichai de imaginar que essa seria a aposta mais acertada da sua carreira como dirigente desportivo. O Leicester de Ranieri protagonizou um dos maiores – quiçá o maior – e mais belos contos de fadas da história do futebol, sagrando-se campeão inglês com enorme folga em relação aos tradicionais competidores ao título (o Arsenal ficou a dez pontos, o Tottenham a 11, os rivais de Manchester ambos a 15, o Liverpool a 21 e o Chelsea a… 31).

 

Sem limites para a generosidade

Terá tido, na temporada seguinte, um dos momentos mais complicados na carreira de gestor desportivo: a decisão de demitir Ranieri em fevereiro de 2016, nove meses depois da glória total. Nessa altura, os foxes encontravam-se apenas um ponto acima da zona de despromoção e em desvantagem perante o Sevilha nos oitavos de final da Liga dos Campeões – barreira que haveriam de superar, já com Craig Shakespeare no comando, caindo apenas nos ‘quartos’ aos pés do Atlético de Madrid.

Ranieri, todavia, não guarda quaisquer rancores do ex-patrão, para quem só tem elogios nesta hora triste. «Estou terrivelmente abalado por esta notícia. O senhor Vichai era um homem bom, que teve sempre uma palavra positiva para todos e que apenas entrava no balneário para elogiar e nunca para culpar alguém. Era um homem tocado pela graça, sempre feliz, com um sorriso que iluminava o seu rosto. Tornou melhor todos os que se cruzaram com ele», referiu o técnico italiano.

A personalidade gentil e generosa do proprietário do Leicester é, aliás, exaltada por muitos dos que com ele se cruzaram. Em Leicester, doou 2,2 milhões de euros para a construção de um hospital pediátrico, ofereceu 1,2 milhões para renovar o departamento de medicina da universidade local e deu 100 mil euros para a preservação dos restos mortais do rei Ricardo III. Antes dos jogos, era frequente oferecer cachorros-quentes, cerveja e donuts aos adeptos do clube, tendo no dia do 60.º aniversário sorteado 60 bilhetes de época. Na ressaca dos festejos do título, de resto, ofereceu um BMWi8 a todos os jogadores do plantel.

«Há uns tempos, um cantor muito famoso aqui na Tailândia fez uma corrida do sul até ao norte para angariar donativos que seriam entregues aos hospitais: o senhor Vichai deu 100 milhões de baht (cerca de 2,7 milhões de euros)», revela Luís Viegas, contando outro episódio que revela a afeição do empresário pelo seu país: «Um jornalista contou aqui que o encontrou uma vez e ele disse-lhe que sempre que quisesse ver o Leicester, ele arranjava-lhe bilhetes porque queria que o povo tailandês visse a equipa que os tailandeses criaram e construíram. Era uma pessoa muito patriótica, tinha muito orgulho na Tailândia. Em 2017 comprou o Leuven, da Bélgica, e contratou o guarda-redes titular da seleção da Tailândia (Kawin Thamsatchanan) – dizem que com o objetivo de o levar em breve para Inglaterra.»

Fervoroso praticante da religião budista – criou mesmo uma sala de oração no Estádio King Power, por onde passava antes de cada jogo -, Vichai era também um amante de equitação e de pólo: chegou a jogar com elementos da família real britânica, além de ter liderado a federação tailandesa daquele desporto e de ter também adquirido um clube em Inglaterra, o King Foxes, que venceu alguns dos torneios mais importantes da modalidade.

Apesar de todo este protagonismo, fugia dos holofotes, cultivando a discrição. Os únicos momentos que se lhe conhecem de manifestações públicas aconteceram após a subida à Premier League, em 2014, e depois nos festejos do título maior, onde recebeu a taça de campeão no relvado, posando com a mesma ao lado da família, e não mais a largou. «Este nosso espírito existe por causa do amor que partilhamos uns com os outros e pela energia que esse espírito ajuda a criar, dentro e fora do campo. E nos próximos anos esse continuará a ser o nosso maior património», disse então. Delegava no filho, Aiyawatt, que nomeou vice-presidente, a responsabilidade de dar entrevistas, tendo entregado a gestão corrente do clube à diretora-executiva Susan Whelan e ao diretor de futebol Jon Rudkin – só intervinha em decisões realmente importantes. Como em 2015, por exemplo, quando Vardy se mostrava reticente em renovar contrato, numa altura em que era seduzido por um convite do Arsenal. Então, o senhor Vichai convidou o goleador para tomar um chá numa sala exclusiva do estádio… e convenceu-o a ficar no clube.

«De coração partido e devastado. Que dia chocante para o clube», escreveu nas redes sociais Adrien, uma das contratações do reinado de Vichai. «Ainda não acredito. Um grande homem, amado por todos», reagia Ricardo, o outro português do atual plantel. A mensagem mais tocante, porém, foi a de Kasper Schmeichel, guarda-redes e capitão do Leicester: «É difícil colocar em palavras o que você significou para este clube e para a cidade de Leicester. Você preocupou-se profundamente não só pelo clube como por toda a comunidade. A sua interminável contribuição para os hospitais e entidades de caridade de Leicester nunca será esquecida. O senhor foi mais além em todos os aspetos. Nunca na minha vida me tinha cruzado com um homem como você. Tão trabalhador, tão dedicado, tão apaixonado, tão gentil e extremamente generoso. Tocou os corações de todos. Não interessava quem era, você tinha tempo para as pessoas. Sempre o admirei como líder, como pai e como homem. Você mudou o futebol. Para sempre! Deu esperança a toda a gente de que o impossível é possível, não apenas aos nossos adeptos, mas a todos os adeptos de todas as modalidades em todo o mundo. Quando me contratou em 2011, disse-me que íamos estar na Liga dos Campeões no espaço de seis anos e que alcançaríamos grandes coisas. Você inspirou-me. Fez-me sentir que nada era impossível. Sem você e a sua família, tudo isto, tudo o que alcançámos seria impossível. Literalmente, você tornou os meus sonhos realidade. Parte-se-me o coração saber que nunca mais o irei ver no balneário, quando sair do aquecimento para falar sobre tudo e sobre nada. Que não vai estar lá a divertir-se e a rir com os rapazes e ver o seu contagioso sorriso e entusiasmo que atingiam todo aqueles que tinham contacto consigo. Não havia absolutamente nada que não fizesse por nós. Você era apaixonado. Devemos honrar o seu legado dando o nosso melhor em campo, assim como você quereria que continuássemos a ser a família unida que criou no clube. Você nunca saberá o que significou para mim e para a minha família. Sinto-me verdadeiramente honrado e privilegiado de ter sido uma pequena parte da sua vida. #theBoss».

Generoso, altruísta, afetuoso, discreto e modesto: Vichai Srivaddhanaprabha era tudo menos o comum multi-milionário dono deste mundo e do outro. E por isso, o homem nascido em Banguecoque será para sempre reconhecido e estimado como um dos mais honoráveis cidadãos da história de Leicester.