Em 1984, Maria Guinot deu um grito. Chamava-se Silêncio e Tanta Gente e valeu-lhe não só a vitória no Festival da Canção, e respetiva representação nacional na Eurovisão, como a eternidade na memória coletiva. Há muito longe dos palcos, morreu aos 74 anos de infeção respiratória.
As canções não se escrevem apenas com letra e música. Têm gente dentro. «Às vezes é no meio de tanta gente/ Que descubro afinal aquilo que sou/ Sou um grito/ Ou sou uma pedra/ De um lugar onde não estou», profetizava na canção vitoriosa.
Quando a tendência ainda era os compositores a trabalharem em função das vozes, Guinot escreveu e interpretou. Sozinha, sentada ao piano, sem artifícios, direta ao coração. A vitória valeu-lhe a participação na Eurovisão desse ano. A interpretação no festival ficou gravada na memória: em solidariedade com os músicos em greve, devido a um diferendo com a RTP, recusou o sistema playback adotado nessa edição e apresentou-se ao vivo, quando todos os outros nove concorrentes aceitaram as condições impostas pela estação pública.
O Diário de Lisboa brincava com o seu nome e titulava ‘Festival guinou para melhor’. Era um concurso já na curva descendente, depois de ter contribuído para o país mudar para melhor graças a hinos de Simone de Oliveira, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho ou Eduardo Nascimento.
A 5 de maio de 1984, no Luxemburgo, Maria Guinot acabou em 11.º lugar com 38 pontos – uma classificação modesta, mas à frente de tradicionais candidatos à vitória final, como a Alemanha. Mais do que isso, deu-lhe a eternidade na memória coletiva de uma geração que se habitou a esperar, quer pelo Festival da Canção quer pela Eurovisão, como por uma final futebolística. «E troco a minha vida por um dia de ilusão», já dizia a canção que a levou pela vida. «Às vezes sou o tempo que tarda em passar», antevia. Conscientemente ou não, Guinot suspeitava que as luzes se apagam depressa.
Em 1981 acabara em terceiro no mesmo Festival RTP da Canção com Um Adeus, Um Recomeço. A participação interrompera um primeiro período de silêncio entre a gravação de dois singles – La Mére Sans Enfant, de 1968, e Balada do Negro Só, de 1969 -, ambos editados pela Alvorada, que seguiam a linha dos baladeiros da época. O regresso só acontece quando a década de 80 ainda acorda para um país em reforma cultural e musical.
Maria Adelaide Fernandes Guinot Moreno nasceu em Lisboa a 20 de junho de 1945, mas cresceu em Almada. Aprendeu piano desde os quatro anos, finalizou o curso no Conservatório e ingressou no Coro Gulbenkian em 1965. Essa aprendizagem é fundamental para a composição de Silêncio e Tanta Gente. O país escuta-a com atenção mas, entre um sim alegre ou um triste não, Guinot escolhe não viver na ilusão. Não dá sequência ao mediatismo, grava mas discretamente e é próxima de figuras como Carlos Mendes, Manuel Freire e José Mário Branco. Este último produz o álbum homónimo de 1990, que conta com a participação de músicos como a violoncelista Irene Lima, o contrabaixista Carlos Bica e o saxofonista Edgar Caramelo. Dos Trovante chegavam o percussionista João Nuno Represas e o teclista (e também produtor) Manuel Faria. O disco sucedia a Essa Palavra Mulher, uma edição de autor datada de 1988.
Uma cumplicidade iniciada em 1986 quando compôs Homenagem às Mães da Praça de Maio, nos dez anos do início da concentração das mulheres que, em Buenos Aires, exigiam saber dos filhos desaparecidos durante a ditadura militar argentina (1976-1983). A canção foi uma das bandeiras do programa Deixem Passar a Música da RTP, no qual era acompanhada por José Mário Branco, que dirige a orquestra.
Esporádicas aparições em programas de televisão durante a década de 90 resgatam-na de um silêncio que nunca lhe foi inóspito. O derradeiro álbum, Tudo Passa, é editado em 2004, na sequência do livro Memórias de um Espermatozoide Irrequieto, o segundo da sua pena depois de Histórias do Fado, assinado com Ruben de Carvalho e José Manuel Osório, sob o tema Um Século de Fado. Em 2010, sofre três AVC que a deixam impossibilitada de tocar piano. Ato contínuo, deixa os palcos que ainda frequentava irregularmente. Já afastada da vida pública, uma infeção respiratória levou-a de vez. «E esta pedra/ E este grito/ São a história d’aquilo que sou» dão agora ainda mais sentido à canção que a acompanhou até ao fim.
Marcelo Rebelo de Sousa lembrou-a pela carreira e pela «cidadã empenhada que também foi». Em nota publicada no site oficial da Presidência da República, pode ler-se que «a sua carreira compreende tanto as canções que a levaram por duas vezes ao Festival da Canção como um reportório politicamente interventivo, nomeadamente em colaboração com José Mário Branco, manifestação de uma cidadã empenhada que também foi».