A18 de Outubro de 2017 Pedro Patacas e Sandro Pinto acharam no Tejo dois complexos submersos, a que chamaram ‘Tejo A’ e ‘Tejo B’.
Muito assoreado, o ‘Tejo A’ era constituído então por dois conjuntos de madeira que entravam pelo fundo adentro, aparentemente em conexão, bem como 2 canhões e 3 âncoras.
Dois pratos em estanho, recuperados por estarem soltos e em perigo de se perder, datavam preliminarmente os destroços do século XVII.
Nos termos da legislação em vigor, os achadores elaboraram Auto de Achado Fortuito a que anexaram um meu parecer, que concluía pela excecional importância dos achados.
Nesse Auto, solicitava-se à DGPC que desse cumprimento à Lei, abrindo «um procedimento de inventariação, tendo em vista a instrução do respectivo processo de classificação destes achados, correspondentes a dois contextos arqueológicos coerentes e delimitados».
Nada de novo: a atividade arqueológica subaquática em Portugal está regulamentada especificamente pelo Decreto-Lei n.º 164/97, salvaguardando-se a compatibilização da «garantia dos direitos dos cidadãos» com «a necessidade de preservar a memória histórica e a informação científica que os bens por eles achados possam trazer à arqueologia portuguesa».
Entregue o Auto, de pronto telefonei a Jorge Freire, director do Projecto de Carta Arqueológica Subaquática de Cascais (ProCASC), comunicando-lhe a descoberta, enviando cópia do parecer e disponibilizando as imagens dos achadores. Fi-lo por achar que, ética e deontologicamente, não fazia sentido que uma equipa que trabalhava no estuário do Tejo desde 2009 não tomasse conhecimento daquelas formidáveis descobertas.
A 28 de Outubro de 2017, eu e os achadores, organizámos um mergulho nos dois locais, convidando Jorge Freire, Augusto Salgado e Carlos Martins, associados ao ProCASC, a participar no mesmo.
Desse mergulho resultou um artigo científico, sendo dele autores Alexandre Monteiro, Jorge Freire e os achadores, entre outros. Os envolvidos ficaram com as coordenadas dos achados.
Não mais os achadores mergulharam na zona. Quase um ano depois, via imprensa e redes sociais, soube-se que a equipa do ProCASC teria descoberto «uma nau da Carreira da Índia naufragada, muito provavelmente entre 1573 e 1619».
Algumas das imagens da ‘descoberta’ eram surpreendentemente familiares. Inquirida a equipa do ProCASC sobre as semelhanças entre essa nau e o sítio onde os achadores os tinham levado, as respostas, ou não surgiam, ou eram dúbias.
A 26 de Setembro de 2018, pedi aos achadores que, em tendo ocasião para tal, fizessem um mergulho no ‘Tejo A’.
A 28, na maré viva e em condições de visibilidade quase nula, os dois achadores desceram à vertical do ponto do qual tinham as coordenadas, pousando no fundo praticamente em cima de dois canhões em bronze – exactamente os mesmos repetidamente mostrados nas imagens do ProCASC. Por todo o lado do ‘Tejo A’ havia cauris, pimenta e porcelana chinesa.
Ou seja, munidos apenas das suas coordenadas, Pedro Patacas e Sandro Pinto foram capazes de cair exactamente em cima do mesmo sítio apresentado pela equipa do ProCASC como evidência da uma descoberta ‘nova’.
Tendo em conta que o estuário do Tejo tem 325 km2 de extensão e que as coordenadas da alegada ‘nova descoberta’ nunca foram divulgadas, era estatisticamente impossível os achadores caírem num outro sítio e este ser o da “nova nau”.
Os factos apontam para uma única conclusão possível: o ‘Tejo A’ e o sítio ‘descoberto de novo’ fazem parte da mesma mancha de destroços. São efectivamente o mesmo e único campo de destroços.
Mais desassoreado, mostrando muitos mais artefactos, madeiras e canhões – mas definitivamente o mesmo sítio.
A tradição construtiva é igual em todos os madeiros, a artilharia é toda consentânea, a datação dos pratos em estanho bate com a datação da estatueta em marfim, e esta condiz com o período cronológico atribuído à porcelana analisada. Basta comparar as imagens vídeo feitas pelos achadores a 28 de setembro, com as divulgadas pela Câmara Municipal de Cascais (CMC).
Não há ali um navio romano lado a lado com uma nau da Índia. Não há ali um vapor de casco em ferro paralelo a uma nau portuguesa em madeira. Não há dois ou três navios diferentes ali. Há só um contexto e este é o campo de destroços da nau São Francisco Xavier, naufragada a 23 de outubro de 1625 no cachopo sul da barra de Lisboa quando voltava da Índia – «um complexo de achados submersos correspondentes a contextos arqueológicos, coerentes», tal como vem explicitado no decreto-lei 164/97.
Quanto à recolha de achados – que passou no SOL como sendo uma «violação de vestígios por mergulhadores não autorizados» – esta vem contemplada no ponto 3 do Artigo 13.º do 164/97. É uma ação que se toma amiúde em arqueologia marítima, em contextos de elevada dinâmica ou grande exposição, como era o caso.
Aliás, foi o que aconteceu em 2017, com os dois pratos em estanho; e também durante o mergulho colectivo – se nessa altura também ninguém tinha autorização para recolher objectos, tal não impediu a equipa de Cascais de levar consigo um moitão em madeira. E muito acertadamente o fez, porque estava solto e em perigo de se perder.
É assim normal que, perante o avistamento de uma estatueta e de um almofariz no sítio do ‘Tejo A’, a descoberto e em perigo de extravio ou saque, os achadores tenham optado por os levantar. E, sempre na estrita observância da lei, os achadores elaboraram novo de Auto de Achado para a DGPC, nele comunicando o estado de desassoreamento do ‘Tejo A’, o aparecimento de canhões em bronze e a recolha de «uma estátua de Nossa Senhora com o Menino ao colo e um almofariz em pedra».
Tal como em 2017, estas peças foram depositadas na NOVA, sendo depois entregues pelos mergulhadores na DGPC. Não há aqui qualquer violação. Não há roubo. Nenhum assaltante rouba e depois vai a correr comunicar às autoridades a existência dos objectos que levantou.
Nem há ilegalidade pela falta de «autorização para executar mergulho arqueológico». De acordo com a Lei, «o recebimento na DGPC do auto do achado fortuito» e a «recolha de bens» determinariam a abertura de um procedimento de inventariação, tendo em vista a instrução do processo de classificação do conjunto coerente de achados declarados, tudo a concluir em 60 dias.
Era preciso que a DGPC mergulhasse no sítio, verificasse o seu interesse arqueológico, determinasse a sua coesão, tipologia e grau de dispersão e elaborasse relatório propondo a sua classificação e inventariação.
Só estando concluído o processo de inventariação a DGPC poderia então propor a sua homologação pela responsável pela Cultura, estabelecendo-se a delimitação da zona e as medidas de salvaguarda a implementar e notificando desta inventariação os achadores e a autoridade marítima.
Destes procedimentos, tanto quanto sabemos, nenhum se concretizou. Até lá, oficialmente, estes sítios submersos são um sítio como outro qualquer.
Evidência disso mesmo é o facto de, perante a divulgação pública do mergulho de reconhecimento dos achadores e a recolha de artefactos em perigo, a Capitania do Porto ter sido instigada – por que entidade ainda não sabemos embora o tenhamos já inquirido junto da DGPC – a emitir um edital de interdição.
Área interdita onde, não por mera coincidência, estão incluídas as coordenadas dadas pelos achadores em outubro de 2017 como correspondentes ao ‘Tejo A’ …
Seja como for, em termos patrimoniais, só se tornou ilegal mergulhar no sítio do ‘Tejo A’ a partir de 4 de outubro de 2018. Mas continua a ser possível, em teoria, mergulhar no ‘Tejo B’… dois pesos, duas medidas.
Os franceses têm uma expressão feliz para quem acha e comunica sítios submersos – são os ‘inventores de naufrágios’. Pedro Patacas e Sandro Pinto são os inventores deste achado, não são ‘assaltantes’ como difamatoriamente os apodou o SOL, não são pessoas que inventem ‘falsas notícias’. São apenas cidadãos responsáveis que ingenuamente confiaram numa Direcção-Geral inoperante e na boa fé de alguns dos envolvidos, partilhando a alegria do seu achado com uma equipa que, um ano depois, comunica esse mesmo sítio como se fosse sua.
Em todo este triste processo, só algo correu bem. Os achadores, enquanto coautores do único artigo científico publicado até agora sobre este achado, contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento da Arqueologia portuguesa – porque a Ciência desenvolve-se com publicações científicas, não com artigos em jornais.
Finalmente, uma correção factual: é falso que só ‘depois de me licenciar e doutorar em Arqueologia’ me tenha dedicado «à descoberta de navios afundados» – não só não sou ainda doutorado, como comecei a minha carreira na arqueologia subaquática no século passado, em 1995, tendo sido técnico superior avençado do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática do que é agora a DGPC.
Com os meus melhores cumprimentos,
Alexandre Monteiro
Arqueólogo Náutico e Subaquático
ICOMOS, Academia de Marinha, University of Western Australia
Instituto de Arqueologia e Paleociências – IAP-NOVA/FCSH
Roma, 06 de novembro de 2018