Os números relativos ao caso das agressões de Alcochete refletem a «manifesta» gravidade – nas palavras da procuradora que assina a acusação, Cândida Vilar – dos episódios ocorridos em 15 de maio deste ano: os 44 arguidos do processo estão acusados de 4441 crimes, revelados no final de um despacho de 143 páginas. Bruno de Carvalho, o ex-presidente do Sporting Clube de Portugal, é considerado, não só, conhecedor do «plano delineado», como também suspeito de ter incentivado os agressores à prática dos «crimes de ameaça, ofensa à integridade física e sequestro» dos jogadores e de elementos da equipa técnica – ao lado de Nuno Mendes (conhecido como ‘Mustafá’), presidente da claque Juve Leo, e de Bruno Jacinto, ex-Oficial de Ligação aos Adeptos.
O SOL teve acesso à acusação, que imputa aos três arguidos 98 crimes a cada, na qualidade de «autores morais»: quarenta crimes de ameaça agravada, dezanove crimes de ofensa à integridade física qualificada e trinta e oito de sequestro. Mustafá é ainda acusado de «um crime de tráfico de estupefacientes».
Na maioria das páginas do despacho de acusação, a procuradora Cândida Vilar dedica-se a descrever o planeamento do ataque levado a cabo por 41 arguidos e que incluía membros não só da Juve Leo, como também dos «Causais» – um grupo mais radical da claque. Um plano que, de resto, foi feito em grupos de conversação no WhatsApp.
O primeiro grupo referido no despacho – «Exército Invencível», com sete dos arguidos do processo e criado, como se lê na acusação, a 16 de março de 2018 -, inclui uma troca de mensagens dois dias antes do ataque que denuncia de forma clara as intenções dos membros da claque leonina de tirar o jogo de fora do campo e agredir jogadores.
É nessa conversa que se refere, pela primeira vez, a vontade de ir a Alcochete. Um dos arguidos, depois de outros levantarem essa hipótese, declara que «também é dessa opinião de ir a Alcochete, mas poucos 20/30». Entre as mensagens que constam dessa conversa, o despacho de acusação refere algumas como: «Merecem é levar na boca todos»; «Tochada neles!» ou «Tochada e porrada nesses filhos de uma puta». As conversas incluem ainda o modus operandi, referindo que deveriam todos ir «tapadinhos», com balaclavas. No centro dos ataques estão os jogadores Acuña – a quem os membro da claque leonina parecem não perdoar os insultos que lhes endereçou -, William de Carvalho e ainda o guarda redes Rui Patrício.
Um dos membros deste grupo de Whatsapp é Nuno Mendes, conhecido como ‘Mustafá’, que não tinha por hábito responder às conversações, mas que tinha conhecimento delas. No dia 13 de maio – quando o Sporting foi derrotado pelo Marítimo por 2-1 na Madeira -, Mustafá envia, porém, uma mensagem, «enquanto aguardava no Aeroporto do Funchal pelo voo de 14 de maio de 2018, com destino a Lisboa», na qual escrevia: «‘Já falei com o presidente e ele disse-me, desta vez façam o que quiserem aos jogadores!’». Nessa ocasião, Mustafá disse também «que o presidente o tinha informado, ‘que Jorge Jesus já não era treinador do Sporting clube de Portugal’».
O despacho vem, de resto, confirmar a manchete que o SOL fez no fim de semana seguinte às agressões, 19 de maio, segundo a qual Bruno de Carvalho teria dado carta branca às agressões que aconteceram na Academia de Alcochete.
Mas o ataque é planeado também noutro grupo de conversação mantido na mesma aplicação de chat, criado ainda antes do «Exército Invencível», a 30 de novembro de 2017, e denominado «Piranhas on Tour». Também aí, nos dias 13 e 14 de maio, são trocadas mensagens que reiteram a intenção de agredir de jogadores. «Eu vou dar bastonadas no Patrício» e «Jornalistas tbm é para varrer tudo!» são as expressões utilizadas por um dos intervenientes. Outro dos arguidos chega mesmo a propor que cada atacante fique responsável por um jogador.
Uma investigação por terminar
Nas primeiras páginas do despacho de acusação, Cândida Vilar faz duas notas. Refere-se, em primeiro lugar, ao «coautor dos factos investigados», Alano Silva, que «se pôs em fuga logo após as detenções dos primeiros 23 arguidos», tendo sido «emitido mandado de detenção internacional contra o mesmo». O suspeito «poderá ser julgado no estrangeiro», pelo que não se deduziu «contra o mesmo, acusação».
Por outro lado, a procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa faz questão de mostrar o seu desagrado relativamente à cooperação da Polícia Judiciária do Porto. «A investigação não está totalmente concluída porquanto, apesar das insistências verbais e agora por escrito, nunca nos foi facultada qualquer informação sobre as interceções telefónicas ao alvo André Geraldes», que decorreram num outro processo, conhecido como CashBall, e «cuja investigação está a cargo da PJ do Porto e é dirigida por um magistrado do Ministério Público».
Cândida Vilar acredita que, estando o telefone móvel do antigo ‘team manager’ do Sporting «intercetado, poderão existir conversas e mensagens que seriam relevantes para a prova nos presentes autos», uma ideia que ilustra dizendo assim: «Basta referir que o arguido Bruno Jacinto declarou que tinha avisado por mensagem André Geraldes de que elementos da claque Juve Leo iam à Academia do Sporting Clube de Portugal».
Uma vez que a PJ nada transmitiu ao Ministério Público sobre o conteúdo das mensagens e telefonemas e que, segundo «o Sr. Coordenador da PJ», não foi possível extrair conteúdos apagados do telemóvel do arguido Bruno Jacinto, porque «o programa não o permitiu», a procuradora Cândida Vilar conclui que «não existem indícios fortes de que André Geraldes sabia da preparação do ataque à Academia de Alcochete e contribuiu para a sua execução».
Qual a real influência de Bruno de Carvalho?
Uma das ideias que mais se destaca da acusação é que, apesar de não ter participado no ataque propriamente dito, o antigo presidente do Sporting instigou à ocorrência das agressões, em especial com as publicações recorrentes que fazia na sua página de Facebook.
«Esta escalada de violência foi apoiada pelo ex-presidente do Sporting Clube de Portugal, Bruno de Carvalho, sendo certo que a Juve Leo é um grupo organizado de adeptos, apoiado e reconhecido por si, tanto mais que o mesmo manteve sempre contactos pessoais e privilegiados com o líder da Juve Leo, mantidos por vezes, no gabinete do próprio ex-presidente Bruno de Carvalho», escreve a procuradora.
Cândida Vilar exemplifica com uma publicação de dia 5 de abril de 2018, em que o ex-presidente dos leões «teceu críticas à atuação de alguns jogadores na sua página de Facebook», depois de o Sporting ter sido derrotado em Madrid pelo Atlético de Madrid. No dia seguinte, voltou a usar a rede social para se dirigir aos jogadores, desta vez com um tom ameaçador, num texto intitulado: «Meninos mimados, então vamos resolver…» Nesse texto ameaçava suspender todos os jogadores.
Em ambas as publicações, defende a procuradora, o objetivo era «determinar os adeptos à prática de ações violentas contra os jogadores e a equipa técnica», uma vez que «há muito que existia um conflito aberto entre o arguido e alguns jogadores do clube, designadamente Rui Patrício, William de Carvalho e Acuña».
Seguiu-se, recorda a acusação, um pedido de reunião urgente dos jogadores ao antigo presidente, antes do jogo com o Paços de Ferreira a 8 de abril, pedido que Bruno de Carvalho agendou para mais tarde e que levou os jogadores a reagirem nas redes sociais. Ao mesmo tempo, Mustafá e a claque que dirige insultavam continuamente os jogadores durante os jogos, tendo nessa altura pedido uma reunião a Bruno de Carvalho «com o propósito de afastarem alguns jogadores».
O desejo da Juve Leo foi concretizado no dia 7 de abril, pelas 22h, nas instalações da sede da Juve Leo – conhecidas como «Casinha». Na reunião estavam presentes, Bruno de Carvalho, Nuno Mendes, Bruno Jacinto e André Geraldes, além de vários membros da claque, que viriam a pôr em prática o ataque na Academia. Nessa reunião foi sugerida uma visita a Alcochete e a resposta de Bruno de Carvalho foi clara: «…Façam o que quiserem!», frisa a acusação.
«Desde então, os primeiros 41 arguidos, seguros da instigação à prática de ameaças, agressões e outras ações violentas por parte do ex-presidente Bruno de Carvalho, do arguido Nuno Mendes e do arguido Bruno Jacinto, agruparam-se e organizaram-se por forma a concretizarem tais ações contra os jogadores», continua a procuradora.
O primeiro ataque aconteceu em 5 de maio e visou o guarda-redes Rui Patrício. Durante o jogo, a claque lançou «pelo menos» dezenas de tochas acesas ao jogador, que teve de correr pelo campo para se proteger, «depois de o arguido Nuno Mendes se ter dirigido ao local onde se encontrava o arguido Bruno de Carvalho», que deu autorização para o ataque, diz Cândida Vilar.
Dez dias depois, aconteceu o assalto à Academia do Sporting, em Alcochete. Depois da descrição dos acontecimentos que levaram à escalada da violência e do planeamento do ataque, o despacho de acusação recorda passo a passo o dia fatídico do Sporting.