O discurso tecnológico está a mudar. A reflexão sobre a evolução da tecnologia e a forma como vai impactar o nosso quotidiano centra-se hoje em questões éticas e comportamentais, muito mais do que em zeros e uns ou bits e bytes. Tem sido demonstrado que a tecnologia fará o que tiver de fazer, assim haja vontade (um conjunto de interesses bem mais amplo do que a necessidade) para a desenvolver, e a capacidade que tem para nos surpreender, por vezes pasmar, é provavelmente a maior evidência da sua capacidade. Claro que há muito caminho para percorrer, precisamos de mais conhecimento, desenvolvimento e experiências para conseguirmos que a tecnologia contribua para solucionar os problemas dos nossos dias e dos que estão para vir. Neste aspeto, basta um périplo atento pelos stands do Websummit para ficarmos tranquilos: há ideias, há empreendedores e até dinheiro para investir.
No Websummit discutiram-se, ou pelo menos alertou-se para a necessidade de discutir, os temas que mais impacto vão ter na nossa relação com a tecnologia nos próximos anos: os limites éticos e morais e consequentemente as bases para a legislação e papel e dos reguladores da atividade. As barreiras que devemos definir e as que devem ser impostas são questões de fundo para determinar e mudar, num curtíssimo espaço de tempo, a forma como aceitamos e convivemos com a tecnologia no nosso quotidiano.
Não é fácil legislar para o universo digital, uma realidade sofisticada, global e que todos os dias evoluiu a um ritmo que a maioria não acompanha. A autorregulação e a responsabilidade individual parecem, à data, não serem garantias suficientes para garantir uma saudável convivência no universo digital. Já se conhecem vários casos em que a ausência de regras e de fiscalização permitiram que fossem cometidos abusos e atropelos, que resultaram num prejuízo considerável para as pessoas e sociedade. Considerando apenas os big four da indústria – Google, Facebook, Apple e Amazon – todos já tiveram de lidar com questões relacionados com a utilização indevida de dados pessoais e partilha não consentida de informação. Se por um lado estamos mais conscientes da importância e valor dos dados pessoais, por outro a adoção de comportamentos individuais que levem à sua proteção ou a uma utilização mais controlada não é, ainda, uma evidência.
Há mais temas além das questões dos dados e da privacidade. As fake news, um eufemismo perigoso para definir uma questão de logro e mentira quase sempre intencional, é outro dos temas na agenda do dia. Numa era em que falamos de conteúdos como nunca, em que esperamos das empresas e das pessoas uma partilha constante e imediata do que entendem que devem partilhar, o fenómeno das fake news, por muito previsível que seja, não deixa de ser uma tremenda ameaça que condiciona indelevelmente a credibilidade do mundo digital.
O papel das marcas na regçãodo ecossistema digital não é claro. Enquanto produtores de conteúdos e dinamizadores da interação social, com um objetivo comercial assumido de forma mais ou menos explícitas, não se colocam grandes dúvidas. Mas na utilização do conhecimento das pessoas para a exploração de técnicas de venda em que se considera a venda, ou recorrendo a uma linguagem mais técnica a conversão, como a métrica determinante do sucesso, aí a questão não é tão simples. Cumprir com os requisitos legais, atuar em conformidade com o regulamento geral para a proteção de dados por exemplo, é apenas uma obrigatoriedade. Para a construção da relevância, as marcas devem procurar um papel que lhes permita ajudar as pessoas, consumidores ou não dos seus produtos, numa melhor compreensão do fenómeno digital. A pedagogia, neste caso a literacia digital é uma oportunidade, talvez até um dever, das entidades que estão mais próximas das pessoas num meio que conhecem muito melhor do que a grande maioria dos seus utilizadores.
Creio que a principal função do Websummit é fazer uma agenda dos temas mais importantes do mundo digital. Depois as conferências e palestras vivem de soundbytes, algumas marcas estão lá e não percebemos porquê, o discurso, perdão, o pitch de diferentes startups é por demais igual, além de que há muita hormona no ar e um ver e ser visto que não passa despercebido. Sem olhar a custos, o Websummit é um evento rico e útil para quem acompanha o mundo digital. Considerando os custos, então temos de comparar o Websummit com outros eventos e perceber se há formas mais interessantes de gerar o mesmo nível de retorno: um evento com projeção global, reconhecido além da sua indústria e que contribui para a afirmação do país num setor de ponta. Numa breve análise, não estou a ver outro.
*Responsável Planeamento Estratégico do Grupo Havas Media