Entre Palahniuk e Danielovich

Volodymir Ivanovich Palahniuk tinha um pescoço de cisne. Ou de girafa. Ou mesmo de avestruz. Mas ninguém conhece Volodymir Palahniuk. Enfim, também ninguém conhece Issur Danielovich. E nem um nem outro se preocuparam muito com isso.

Em 1949, Danielovich foi Midge Kelly, em Champion, filme de Mark_Robson, um tipo meio velhaco que tanto dava murros no ringue como golpes baixos nos amigos e nas amantes. Foi obrigado a casar com Emma, a filha do promotor de combates, Tommy Haley, no dia em que o pai da moça os apanhou juntos em flagrante, muito despedidos de preconceitos. E do resto.

Os americanos chamam a isso shotgun wedding. A expressão é suficientemente clara para não precisar de tradução.

Conheci um infeliz que se casou assim. Gabava-se em grupelhos de imberbes que, pelo rondar da meia-noite, saltava pela janela do quarto da namorada e, enquanto a família dela dormia, se dedicavam a ginasticadas imitações das instruções do Kama Sutra. Parece que, dentro do prazer carnal, lhe sobressaía um certo prazer perverso pelo facto de o pai da moça ser um guarda nacional republicano, figura que neste país, nunca gerou simpatias desbragadas.

Prossigo: estão os pombinhos arrulhando ao som do ressonar do sargento (vamos supor que o homem era sargento, para facilitar a descrição da acontecência), com o meu amigo a analisar a namorada sobre o divã, para citar o Hermes de Aquino, quando, de repente, a porta do quarto se abre, e o cristal bonito caiu e quebrou. Que flagra! Qual escurinho do cinema, quais dropes de anis. O sargento, volumoso como manda a regra natural dos sargentos, encheu a ombreira com uma caçadeira na mão e perguntou, ensonado, bocejando: «Então meu jovem, para quando é o casório?».

Volta e meia via-o – o infeliz, não o sargento – a passear no Centro Comercial da Portela com um rancho de filhos atrás.

Volodymir Palahniuk nasceu praticamente dentro de uma mina de antracite, em Lattimer, Pensilvânia. Por isso não teve outro remédio do que ser mineiro. Até ao dia que se fartou e mandou a mina às malvas: tornou-se boxeur profissional. E passou a ser Jack Brazzo.

No dia 17 de dezembro de 1940, Jack Brazzo defrontou Joe Baksi. Joe também nascera praticamente numa mina de antracite, na Pensilvânia, em Kulpmont, mas gostava do nome de batismo e achou por bem levá-lo para os ringues. Era um peso-pesado de peso, se a expressão me é permitida. E não tinha vontade nenhuma de ser boxeur, apesar de tudo: «Ora, é melhor estar aqui do que no fundo de uma mina», dizia à boca larga. Já Brazzo, ou Volodymir, como quiserem, reconhecia: «Devou estar louco de todo para andar a levar porrada na cabeça por uma miséria de 200 dólares. Acho que vou dedicar-me ao teatro». Ah! Pois… Mas não desatem já a rir a bandeiras despregadas.

O combate entre Baksi e Brazzo teve lugar no Westchester Country Center em White Plains, Nova Iorque. Não foi nada de especial. Nem atraiu multidões. Mas ainda hoje faz parte da história do boxe.

Baksi bateu Volodymir e Volodymir foi para a Força Aérea ganhar corpo para lutar na II Grande Guerra. Tinha a cara tão desfigurada pelos murros que andara a levar nos tempos mais recentes que o obrigaram a uma plástica. Ficou irreconhecível. Para ele próprio. Para todo o mundo ficou reconhecível como poucos. À beira da morte, desmentiu o filme: «Ora, inventam cada coisa. Se era para me reconstruírem a cara, ao menos tivessem feito de mim um tipo bonito». Era um rapaz sensível: escreveu um livro de poemas – The Forest of Love.

Quando foi dispensado da tropa, fez tudo e mais um par de botas: de cozinheiro a empregado de mesa, de salva vidas a modelo fotográfico. E estudava na Universidade de Standford. Teatro, claro! Os tempos de boxeur já se perdiam no poço do olvido quando fez um papel no seu primeiro grande filme: Um Eléctrico Chamado Desejo. Se Volodymir Ivanovich Palahniuk não dava jeito nenhum para combates de boxe, imaginem para encaixar num cartaz a anunciar a película… Ficou Jack. E o Palahniuk passou a Palance. Jack Palance. Em 15 combates tinha vencido 12 por KO.

Issur Danielovich foi campeão do mundo de boxe, mas só como Midge Kelly, o miúdo que saiu das raias da pobreza até ao explodir das estrelas. Em The War Wagon fez de Lomax. Há uma garota que lhe pergunta: «Por que tens esse buraco no queixo?». Ele responde: «Vês este anel? Durmo sempre com ele encaixado aqui». O queixo de Issur faz parte da história do cinema. Não tivesse sido ele o queixo de Spartacus, de Ulisses e de Van Gogh. E de Kirk Douglas. Danielovich também não encaixava nas listas dos elencos. Principalmente como protagonista.

afonso.melo@newsplex.pt