Aline Frazão. “Há uma certa ambição de profundidade a que não se consegue chegar com a música”

“Os momentos de criação são sempre muito breves, concentrados num período de tempo muito curto, porque ando sempre em tour”

Ao quarto disco, Dentro da Chuva, a angolana Aline Frazão deixou a sua música entregue ao som da voz e do violão e foi ao Brasil gravá-lo. Quase dois anos depois de ter voltado a viver em Luanda, permitiu-se assumir a sua influência brasileira (aquela que sempre lhe apontavam quase como se não fosse natural na música de Angola) e construir um disco sem artifícios, onde se misturam as memórias familiares com a crónica social, onde surge a inspiração de Ruy Duarte de Carvalho e um pequeno nada de recordação de Birkin/Gainsbourg, onde se homenageiam as mulheres angolanas e se assume a melancolia do «cacimbo embaciado». Depois de apresentar o disco no Porto e em Coimbra, dia 29 será a vez de Lisboa ouvir Dentro da Chuva ao vivo no Teatro São Luiz.

 

Começava por uma canção de Dentro da Chuva, ‘Um Corpo Sobre o Mapa’, que parece muito autobiográfica, em que diz «quis andar no meio do mundo sem ter casa para morar». Foi essa ideia de nomadismo que a atraiu na música?

A música é muito nómada, mas eu quando comecei não sabia. Vim estudar para Lisboa e depois quando fui para Barcelona é que começou esse meu ímpeto de viajar e de mudar de casa. Em três anos morei em três cidades diferentes em Espanha: Barcelona, Madrid e Santiago de Compostela. Foi tudo muito rápido e foi o período que antecedeu a minha entrada para a música de forma profissional, em Santiago de Compostela. Mas essa sensação de mobilidade foi um desapego muito importante, também em termos de língua portuguesa, de estar a falar outra língua, de me conhecer noutra língua. Toda a gente que mora num país que fale outra língua tem a sensação de uma nova pessoa dentro de si por falar de outra maneira. Um momento de grande aprendizagem que antecedeu a minha entrada para a música. Portanto, quando entrei para a música já era nómada. Mas com a música passei a viajar. Primeiro só com a guitarra às costas; amigos que me recebiam; tocar num bar qualquer. Depois, já com uma estrutura mais organizada. E foi assim durante dez anos. Essa letra fala muito desse período, dessas viagens, dos lugares que me marcaram mais e termina em Luanda. É um fechar de ciclo, porque voltei para morar em Luanda há dois anos.

 

Acha que essas viagens também lhe dão algo que não conseguiria ter se estivesse parada no mesmo sítio?

Já achei várias coisas, hoje, particularmente, acho que dão. Num mundo cada vez mais em bolha, em redes sociais, por mais cansativas, por mais superficiais que sejam essas viagens, aproximam-te do mundo, das pessoas, dão-te um outro tipo de material.

 

Procura sempre ter algum tempo para ver os sítios?

Às vezes, não dá, e, às vezes, não quero, porque preciso descansar. A vontade de sair do hotel e conhecer as cidades vai esmorecendo porque ficas a pensar que depois daquele há outro concerto e queres defender o teu trabalho, porque a música vem primeiro e a energia não é inesgotável. Há alturas em que tens de escolher e reservar-te um pouco, algo que tenho tentado aprender. Tudo para continuar a ter la ilusión, de cantar e escrever, de estar com as pessoas.

 

Qual é a parte de que mais gosta: a da criação, a de estúdio ou a de tocar ao vivo?

Ao vivo, até porque os momentos de criação são sempre muito breves, concentrados num período de tempo muito curto, porque ando sempre em tour ou sempre ocupada. Quando escrevo um disco é tudo muito rápido, nem sequer tenho tempo para dizer ‘gosto muito’. As passagens pelo estúdio também são rápidas. Este disco deu-me muito gozo, provavelmente foi o disco que mais prazer me deu, mas o que desfruto mais é do contacto, da música ao vivo, de como as canções depois se transformam, dessa magia que acontece quando estás com as pessoas.

 

Estabelece um período para criar, um momento em que diz ‘agora tenho que…’?

Normalmente, tenho um período porque não sou desses artistas que está sempre a escrever. Em geral, vou acumulando informação e depois chega um momento e escrevo. Quando escrevia as crónicas para o Rede Angola também era assim. Não sou muito disciplinada. Com a música é mesmo necessidade, porque parar é difícil.

 

Há canções que achou que funcionariam melhor em palco do que realmente funcionaram?

É muito recente, mas… [longa pausa] acho que tudo o que é mais orgânico funciona melhor em palco. Este disco tem muitas músicas que são orgânicas, por isso, muitas delas funcionam em palco. Algumas não funcionam tão bem, mas acho que é mais por motivos da produção em disco ser mais elaborada e, depois, em palco sou só eu. É só uma pessoa, dois braços, não dá para fazer muito artifício. O ‘Manifesto’, uma música do disco que é toda em percussão, nem sequer entra no espetáculo, porque não dá para reproduzi-la, teria de recriá-la completamente. Mas, de um modo geral, este é o disco que tenho menos a sensação da distância entre o disco e o espetáculo.

 

Por serem muito baseadas em voz e violão...

Todas as minhas canções são voz e violão, mas estas canções, em particular, são feitas para voz e violão. Por exemplo, o ‘Tanto’ [do disco Movimento] também surgiu da voz e violão, mas não resultaria tão bem se não fosse aquele arranjo, aquela banda por trás, que eu já pensava que ia ter quando a escrevi.

 

Voltando a ‘Um Corpo sobre o Mapa’, fala em «Lisboa para não voltar», isso quer dizer que o seu ciclo em Lisboa terminou?

Nunca se sabe. É uma licença poética, não é um contrato. Mas, de certa maneira, senti isso, quando decidi deixar a Europa, senti que se esgotava um ciclo e Lisboa sempre foi um bocado o centro desse lugar para mim. Verdade seja dita que nunca me identifiquei muito com Lisboa. É uma cidade que conheço muito bem, que faz parte de mim, vivi aqui muito tempo e navego bem na cidade, mas nunca me senti em casa. Hoje em dia estou mais apaziguada com isso. Mas, acima de tudo, era essa necessidade de estar em Luanda. Essa decisão foi muito importante para mim. De «acordar em Luanda», acho que esse verso é mais importante que todos os outros.

 

Chegou a uma etapa em que percebeu que tinha de regressar?

Por muitos motivos diferentes, mas, sim. Foi num dia de junho, num desses dias em que se revela uma grande verdade diante de ti; uma decisão que te custa muito levar a cabo, porque te dá muito medo, porque tens uma data de compromissos. Nunca tive muitos momentos desses na vida, mas foi um desses em que, claramente, vi que tinha de voltar e, felizmente, revelou-se a decisão mais acertada. Faz-me muito bem estar lá.

 

Acabou por apanhar um período interessante em Angola, o da transição.

Curiosamente, sim…

 

Não teve nada a ver com a transição?

[risos] Acho que tivemos todos um bocadinho a ver com isso, sinceramente. Tudo se encadeia. Foi bom ver de perto, olhar desde longe tem muitas limitações e, para entender algumas coisas, é preciso estar lá, de corpo presente, como disse o Pepetela, Também porque falar de Angola desde fora sempre foi incómodo, porque nunca é bem visto desde Angola e porque parece que não chegas completamente – eu sempre assumi muito isso, apesar de outras pessoas não o assumirem. Sempre achei que era um olhar que complementava o olhar desde dentro – e continuo a achar. Por outro lado, escrever muito tempo sobre Angola, essa exigência de opinar, de falar sobre um assunto complexo, causou-me um desgaste enorme e uma necessidade de escuta e de silêncio.

 

Luanda tem essa capacidade de estar sempre a reinventar-se e estando longe é mais difícil perceber essa reinvenção.

Sim, apesar de quando estava cá, e escrevia para o Rede, ir muitas vezes lá, a cidade, realmente, muda muito. Quem fala sobre Angola, quem escreve sobre Angola, são pessoas que realmente não conhecem completamente o país e vai-se recreando uma ideia de país através desses discursos que, na verdade, se distanciam muito da realidade. É, mais uma vez, o problema do mundo atual, essas bolhas intelectuais – e a seguir acontecem essas surpresas eleitorais! Isso, paralelamente a uma reflexão política, pessoal sobre qual o meu lugar no mundo; desde as minhas características como mulher, como angolana, como mestiça, como feminista, como pessoa de esquerda – o que é que isso significa na realidade? O que posso dizer realmente sobre o lugar donde venho, desde esse meu lugar de privilégio bué acentuado. Pensando em tudo isso, dei-me conta de que precisava de me calar um pouco e de ouvir outras pessoas e aí entra muito o Ondjango Feminista, um coletivo com pessoas que têm identidades muito diferentes das minhas. A convivência com elas, o aprendizado, foi muito importante para mim, para entender muitas coisas sobre o país, sobre o próprio feminismo, sobre os vários feminismos, sobre a necessidade de interseccionalidade da justiça e de como gerir no meio de tudo isso o meu lugar de fala. Hoje em dia sinto-me sempre muito incomodada quando me perguntam sobre o feminismo em Angola – e tem sido difícil nas entrevistas deste disco lidar com isso, porque tens de falar sobre Angola, sobre o feminismo, sobre o ‘Sumaúma’ e, na verdade, o que querias era não falar. É preciso parar para entender antes de falar e estou um pouco nesse momento em que não gostaria de falar tanto sobre isso, até porque sinto que em Angola se fala muito à toa. Vive-se a política de forma muito novelesca, como se fosse uma novela da Globo, como se a política fosse um mar de fofocas e mujimbos, como se houvesse sempre uma intriga, um mistério. Mas isso é desde o lugar acomodado das elites que falam sobre a política, porque a vida real é muito diferente. Toda essa abordagem de Angola que cria esse romance, essa polémica constante, isso é muito desgastante, muito cansativo e não me interessa absolutamente nada.

 

Falar de feminismo em Angola é completamente diferente. Há etapas que não se podem saltar.

Sem dúvida, mas demorou um tempo para todas entendermos que tem de se escrever um feminismo desde ali, que não é da África do Sul, que não é do Brasil – o feminismo negro brasileiro não tem nada a ver com o feminismo angolano, nem se calhar com o feminismo do Quénia. Essa importância dos contextos e de entender quem são as pessoas e não só falar as teorias.

 

Foi para Angola para calar e ouvir?

Se puser isso como chamada vai ser ridículo porque depois vai ter toda uma entrevista minha a falar, mas essa foi a ideia [risos].

 

Está atenta ao que se vai passando em termos musicais em Angola?

Sim.

 

Esse sim não pareceu muito convincente.

O problema é que não há muita coisa, principalmente coisas novas. Acho que há uma vontade de se fazer coisas novas, mas falta um bocado de estrutura. E gastas tanta energia na criação de estruturas que as coisas novas demoram.

 

Podia ter produzido este disco em Luanda?

Tinha pensado fazer o quarto disco em Angola, algo que rapidamente se desmoronou. Quando o quarto disco se tornou neste disco, já não o queria fazer lá e pensei logo no Brasil, pelas características do disco, de ser um disco a solo, mais intimista, mais voz e violão, para que houvesse mais proximidade com essa linguagem, com esse som.

 

E o próximo?

O próximo talvez seja em Angola. É o que faz sentido, mas vamos ver.

 

Sempre se falou na sua música como muito influenciada pela música brasileira, teve de voltar para Luanda para se sentir à vontade para ir gravar ao Brasil?

Provavelmente. Ao voltar a Luanda, há muitas questões que se distensionam e sinto-me muito integrada com outros artistas que também têm influências brasileiras. Só que, às vezes, desde fora, como és tão confrontada com essa pergunta, esqueces-te, perdes um bocado a pista das coisas. Mas ouves o Filipe Mukenga, o André Mingas, o Toty Sa’Med, o Paulo Flores, ou o Liceu Vieira Dias e vê-se que a relação com o Brasil não começou comigo. Pelo contrário, é um diálogo em aberto, constante; há uma relação histórica, faz parte da própria génese. Talvez eu não soubesse articular bem isso quando comecei a minha carreira e fosse ficando confusa. Mas, também, depois do Insular – que é um disco de rutura com essas influências brasileiras, de rutura com todas as influências, um disco de página em branco – chega o momento de religar as coisas e de pós-afirmação, é todo um caminho.

 

Percebe-se o entroncar da sua música em Filipe Mukenga e André Mingas.

Mas é preciso conhecer Mukenga e André Mingas [risos], o que é raro na Europa, mesmo em Portugal. A interpretação mais imediata da minha música é que se aproxima ao Brasil porque é aquilo que as pessoas conhecem, se não é Portugal, mas é português, logo é Brasil, porque não há mais nada. Também em Portugal isso acontece, trabalhei com pessoas que achavam isso algo negativo e isso vai-te condicionando, não és propriamente uma pedra.

 

Acha que esse regresso a Luanda também permitiu…

O regresso a Luanda permitiu o regresso a mim mesma.

 

O que ganhou e perdeu com o regresso a Luanda.

Perdi alguns amigos e isso são perdas importantes, murros no estômago. Perdi algum dinheiro, por causa das viagens que tenho de pagar para vir cá, mas isso não é muito importante. Ganhei muitas coisas, ganhei outros amigos e amigas, ganhei uma certa paz, que precisava, uma estabilidade, que ansiava, e uma proximidade com a família, que antes não valorizava tanto -contextos dos 20 anos. E uma outra relação com o mundo, por estar nesse lugar periférico que é o país africano de onde eu venho. E sentir que tudo o que escrevi antes sobre a minha relação com aquele lugar não era mentira.

 

O Dentro da Chuva começa com memória, a memória do seu avô cabo-verdiano, e acaba com uma crónica social, uma pequena canção sobre o que se passa hoje nas maternidades de Angola, é o reflexo daquilo que é, a memória e a relação com a família que pode recuperar, e esse olhar interventivo sobre o que se passa à volta?

Há um lado que tem a ver com essa relação com o tempo e com o espaço, que sempre está muito presente na minha música; as minhas letras são muito esse movimento também. E em mim acontece essa história, o político e o poético, que procuro sempre balancear nos trabalhos. Este disco é menos político, na verdade – é um outro político, na minha opinião, mas isso já é outra conversa. Mas isso é consequência do Rede Angola, de ter falado tanto sobre isso também me libertou para não ter de falar tanto sobre isso.

 

Como é a relação com esse avô cabo-verdiano?

É o meu avô mais presente ainda hoje, apesar de ele morar cá agora. É o meu avô materno, cresci no quintal dele, com os meus primos, essa relação de família grande angolana – muita gente sempre, sete tios. O meu avô paterno, que mora em Angola – a minha avó mora cá e a minha outra avó morreu antes de eu nascer -, sempre foi mais retraído, o meu avô de Matosinhos, o avô Frazão. E o meu avô Carlos sempre foi o meu ‘avô’, aquela instituição um bocado clássica, de pai grande, de muito carinho, atenção, candura extrema. Sempre foi um grande mistério para mim, mesmo já de adulta, essa questão do meu avô ser cabo-verdiano, e a forma como a minha mãe cultiva a relação com a origem cabo-verdiana dela – sem ir a Cabo Verde já adorava tudo, já ouvíamos em casa, ela dizia-se crioula. E depois chega até mim, a mim, à minha irmã, aos meus primos, toda a minha família é muito ligada a Cabo Verde de uma maneira, essencialmente, musical. E o meu avô é da ilha do Fogo, o que aumenta o mistério. Foi em criança para Angola, fugido da família e quando lhe pedes que fale crioulo, ele fica com aquele sotaque fechado, um homem badiu. A relação com o meu avô está diretamente ligada à relação com os meus tios e com a minha mãe, que é algo que tenho cultivado muito e entendido quanto de mim vem daí, de um conceito de família que tinha perdido a pista porque a Europa não tem muito isso.

 

Fala crioulo?

Não e muito menos o badiu.

 

Acredita nessa velha ideia de que o artista pode mudar a sociedade?

Acredito porque me muda a mim porque há essa capacidade de brutal de chegar a alguém a partir do pensamento, veres um filme que te faz pensar e, no limite, mudar certas coisas em ti. E outra interferência é com as emoções das pessoas, com os sentimentos. Essa coisa de ligar as pessoas, de te ligar contigo mesmo, é um poder que tem a arte. Todas as coisas políticas que têm acontecido agora, a eleição de Trump, essa viragem toda, esse ódio, essa fragmentação social, esses atritos, na minha opinião estão relacionadas com esse lado pessoal, com não sairmos dos telemóveis, com não viajarmos e nos olharmos nos olhos, está relacionado com não ouvirmos boa música, com não vermos bons filmes, com não termos tempo para a arte, para a cultura, para pensar, para conversar, acho que está tudo relacionado. Acho que é uma crise mais profunda do que a macropolítica dos telejornais. Qualquer pessoa que se sente a conversar com um amigo que deixe o telefone na carteira ou no bolso é um ato revolucionário.

 

Acha que uma canção como ‘Manazinha’ pode ser um grãozinho para ajudar a mudar alguma coisa?

[Longa pausa] Gostava que sim. Se for um grãozinho é muito pequenino.

 

Está a ver-se a ter algum papel em termos políticos?

Neste momento, não.

 

Neste momento?

Já pensei muitas vezes nisso, mas neste momento não. Se me perguntasse, se me via na literatura, para lá da música, diria talvez. Agora, na política, esse lugar talvez seja de outras pessoas. Vamos ver.

 

Está a pensar escrever algum livro?

Não estou a escrever nada, não tenho tempo, primeiro tenho de conseguir tempo. Conclui há uns dias que há uma certa ambição de profundidade a que nunca se consegue chegar com a música. Parece que não é o lugar para falar de certas coisas que gostaria de falar, de pensar, de partilhar. Quem se senta a ouvir um disco, não tem paciência para certas coisas. O ato de abrir um livro e ler coloca-te numa outra relação de intimidade e de tempo. As pessoas hoje em em dia já não ouvem discos, ouvem uma música. Com a literatura ainda se preserva uma certa profundidade; há um tempo para chegar a um lugar. Sinto-me um bocado deslocada ao falar de certas coisas nas entrevistas ou nos concertos, parece-me um bocado presunçoso. Há certas coisas que se esgotam na música como vontade de expressão, talvez na literatura haja um espaço para outras coisas que gostaria de expressar, de refletir, de provocar.

 

Essa expressão de vontade de escrever é apenas um desejo ou uma coisa concretizável?

É concretizável, sinto que é. Seria superdesafiante.

 

Foi testemunha da transição de José Eduardo dos Santos para João Lourenço. Mudou tanto como se diz que mudou? Se mudou tanto, tinhas noção de que poderia ser tão veloz essa mudança?

Não sei bem o que se diz aqui, estou um bocado distante da imprensa portuguesa e não sei exatamente o que as pessoas pensam. Começo pela segunda parte: sabia que ia ser uma mudança rápida e sabia que a saída de JES do poder seria uma grande mudança histórica para o país. Chegarmos ao dia das eleições e não estar lá a cara dele, já é uma grande mudança. Acho muito importante essa agenda contra a corrupção, pessoalmente continuo bastante insatisfeita com as mesmas coisas com que estava insatisfeita no tempo de JES. Também é uma mudança importante a questão da liberdade de expressão, a TPA a fazer perguntas difíceis a um ministro, coisas que eram ficção científica um ano antes. Mas poucas coisas mudaram na vida dos angolanos. Tudo bem um ano de governação não é muito, como sempre esse argumento de que em Angola não se faz tudo num dia, que é o argumento eterno para adiar as agendas sociais, as agendas de desenvolvimento. Para aquilo que acredito que faz falta em Angola, que sempre fez, a situação não está melhor. Em alguns casos, está pior, porque há uma grave crise económica, há muito desemprego. Continua a haver uma visão da sociedade superclassista, onde as pessoas mais pobres não existem e, se existem, rapidamente podem ser espancadas pela polícia por estarem a vender na rua. Continua a haver uma desconsideração do cidadão e da cidadã, continua a haver um adiamento que me parece demasiado grave para ser tomado de forma ligeira.