«Hoje já fizemos quatro espetáculos. Começámos às nove e meia da manhã », conta Filipe La Féria da Rapunzel, a peça natalícia que sucede a Pequena Sereia, Tarzan e Aladino no palco do Teatro Politeama.
Não há tempo a perder. A entrevista decorre entre um intervalo, entre sessões quase contínuas. «Às vezes fazemos cinco sessões por dia. Há um dia em que vamos fazer seis vezes. Começamos às oito e meia», descreve. «Conquistámos um prestígio que nos faz ter público de todo o país. De todas as escolas».
O encenador pegou na fábula dos irmãos Grimm e contou uma nova história. «Da velha fábula alemã, tem a personagem da madrasta e a Rapunzel. As outras são inventadas. Procurei afastar-me muito do filme do Disney e criar a nossa própria linguagem e a nossa própria narrativa para esta história», adicionando, por exemplo, novas personagens cómicas. A Rapunzel, explica, «trata de valores humanos fundamentais como a liberdade, o afeto e o amor». E pergunta-se: «Quantas madrastas da Rapunzel há no ser humano pensando que estão a fazer o bem quando não estão?». As crianças, diz, «percebem tudo e participam. Interrompem e põe-se de pé». Elas são o primeiro juiz e as reações não surpreendem. «Estão sempre do lado da Rapunzel e contra os maus.
«Por vezes, parece um concerto de rock» e, de facto, apesar de as gerações nascentes serem o público alvo, o propósito da peça é chegar a «todas as idades» e a «todas as sensibilidades».
La Féria perguntou às netas que espetáculo queriam ver este ano na quadra e a resposta foi a Rapunzel. «É o meu presente de Natal», confessa. «Para elas e para todas as famílias. Não é um espetáculo para crianças. É para todas as idades », defende.
Pode ter nascido de um pedido familiar, mas – ou talvez também por isso – os resultados não se fizeram esperar. «É surpreendente. Excedeu todas as minhas expectativas. Os pais e as famílias ficam surpreendidos pela qualidade que tem. As pessoas ficam deslumbradas. É muito mágico», diz em jeito de balanço de perto de dois meses em cena, comparando-o às produções da Broadway e do West End. «[O espetáculo] tem uma montagem extraordinária e é acompanhado por uma sofisticada banda desenhada projetada num ecrã gigante que cria a terceira dimensão». Uma «alegoria» que «faz pensar» e, em paralelo, «deslumbra» pela «magia». «Não é habitual em Portugal fazer-se um espetáculo com esta dimensão, uma cenografia que é deslumbrante, com os bailarinos e a música que é totalmente original. O nível é internacional», assume. «Arriscámos tudo nesta peça, mas está a compensar». afirma com alívio.
Diariamente, chegam autocarros de todo o país para assistir ao espetáculo que junta teatro, música e dança com atores, cantores, bailarinos e acrobatas, mas a Rapunzel é democrática e pode ser vista todos os sábados e domingos às 15h00. «Não temos uma grande tradição de o público adulto vir ver este tipo de espetáculo à noite», aponta, recordando encenações anteriores como o musical Annie, capaz de ser transversal no apelo. «Mas o interesse do público é tanto que os telefones já avariaram. Pomos os bilhetes à venda e uma hora depois está esgotado. E são 780 lugares».
Interessa-lhe «sempre refletir sobre o ser humano», descrevendo o teatro como «um espelho para o espetador se ver». Uma pedagogia que apregoa «do teatro clássico à revista e à comédia».
Há mais de vinte anos que Filipa La Féria produz espetáculos de Natal e já reconhece públicos que se foram formando em espetáculos idos como «A Menina do Mar» e «O Feiticeiro de Oz». «Muitos são agora os que vêm ver espetáculos para adultos». constata. «Cada vez que estes espetáculo [infantis] destes, são melhores. A qualidade vocal, interpretativa e de figurinos; a música deslumbrante e os vídeos que acompanham a cenografia só são possíveis com este background de 24 anos», clama.
O elenco é formado por atores-cantores como Dora, Carina Leitão, Ricardo Soler e João Frizza. E há o caso singular de Filipe Albuquerque, o Cavaleiro Artur em Rapunzel, que um dia sonhou subir àquele palco ao assistir ao longínquo Jasmim ou o Sonho de Cinema. «Ele veio cá com a sua escola com seis anos e soube que queria ser ator», recorda Filipe La Féria.
«Não me posso queixar do público. Devo ser o único criador em Portugal que tem peças tanto tempo com lotações esgotadas», usando o exemplo do musical Amália, que esteve em cena durante seis anos. «Isto é um transatlântico. Não trabalho com subsídios. Não recebo apoios do Estado, portanto é o público que me permite ter esta profissão que escolhi há mais de 50 anos e que é a minha vida».
A conversa resvala então para a política. «O Estado devia ver a quantidade de autocarros e os milhares de crianças, com os professores e às vezes as famílias, que todos os dias vêm aqui. É uma alegria ver os Restauradores cheios de camionetas. O Estado devia ter mais consideração. Mas não tem. Em Portugal, há uma política cultural do Estado. Há uma forma de fazer, uma elite que recebe subsídios. Eu não jogo nisso. Jogo com o público».
O encenador gostava de levar a Rapunzel em digressão durante o verão, só que «nunca é tão deslumbrante como no Politeama porque os palcos não estão preparados». «Em Portugal, fizeram-se bastantes teatros que não são teatros. São auditórios para os presidentes de câmara fazerem conferências de imprensa. Vamos lá e não têm condições absolutamente nenhumas», lamenta. «Gastou-se milhões numa rede de teatros, feito por arquitetos desconhecedores das necessidades de um espetáculo», critica. «É uma realidade agreste e uma opinião impopular mas é verdade. As pessoas do teatro não foram chamadas para falar», contesta ainda.
Já a olhar para amanhã, 2019 será o ano da Severa, um espetáculo com Anabela e Filipe Cardoso que «vai dar uma nova perspetiva do nascimento do fado». Filipe La Féria recorda que «o fado veio do lundu e do chorinho, da vinda dos escravos», antecipando a memória de «uma história negra de escravatura, prostituição, meretrizes, chulos e faias num tempo histórico muito interessante e doloroso para Portugal que foi a guerra civil». Este que será o «espetáculo da vida» de Filipe La Féria estreia em fevereiro.
Em cena, além de Rapunzel está Eu Saio na Próxima e Você? com Marina Mota e João Baião.